quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Experiências


São as experiências que trazem amadurecimento e uma nova perspectiva sobre os fatos e situações corriqueiras, amadurecer é saber lidar com as decisões tomadas.

As experiências pelas quais passo são uma excelente fonte de textos. Todos os textos publicados neste blog carregam uma experiência pessoal pela qual passei. Por se tratarem de situações carregadas de sentimentos, desde o começo tinha em mente que registraria essas experiências pra tê-las como um diário e relembrar muitas dessas situações, sem descartar o objetivo de compartilhá-las.

O período de junho a agosto deixou de me trazer experiências gratificantes, merecedoras de uma página no diário, pois Eu estava me sentindo extremamente insegura pra poder enfrentar o mundo.  Resultado, estava fazendo tudo, ainda vestido de menino e tudo isso por puro medo da reação alheia, até que, mais uma vez, caiu a ficha de que não me privaria de viver minha vida, frequentar um curso, ir ao supermercado, correr - amo -, falar com as pessoas, enfim, fazer as coisas que qualquer pessoa normal faz.

De repente me sinto tão segura de mim, novamente, que vou onde tenho vontade de ir, claro, procurando de todas as maneiras preservar minha integridade física, psicológica e emocional. Viver é um exercício diário e todas as manhãs desperto feliz por mais um dia em que tenho a oportunidade de ser Eu mesma, de poder fazer o melhor mais uma vez, de poder aprender e ensinar e principalmente, filtrar/decidir aquilo que me atinge e aquilo que já não possui mais qualquer tipo de influência no meu emocional, como risinhos, cutucadas, etc.

Então a partir dessa semana, me permito mais uma vez viver velhas e novas experiências, me descobrir e redescobrir, me reinventar e deixar de lado tudo aquilo que não interfere em minha vida e que não me traz qualquer tipo de preocupação. É ótimo compartilhar estas experiências, pois é uma forma de aprendizado, amadurecimento, preparação para as situações vindouras e uma forma de extravasar toda essa felicidade que parece ter chegado de uma vez só.

Na eloquência da minha mente, frases vêm e vão numa velocidade assustadora e uma delas ficou de modo permanente, "se você quer um resultado diferente, faça algo diferente", porque é tão fácil se acomodar e chegar ao final do dia com o mesmo resultado dos outros tantos que ficaram pra trás, sem ter uma nova história pra contar, e uma das coisas que mais quero é continuar tendo histórias a compartilhar.

Quando o despertador tocar será uma nova oportunidade de fazer tudo diferente, mais uma vez.

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O caminho - parte I


Para alcançar um objetivo, é preciso renunciar temporariamente a certos prazeres, suportar a dor mais intensa. Só quem não desiste chega ao fim e a recompensa é demasiadamente gratificante.

O início da transição, talvez, seja a parte mais difícil de conviver. Aceitar o fato de que tenho incongruência de gênero e lidar com esse fato, me tomou um tempo e energia enormes. Dar o primeiro passo é difícil quando você está na zona de conforto, aparentemente está tudo bem, mas no meu interior ainda não estava pacificada minha decisão. O medo do desconhecido - nem tão desconhecido assim, pois sabemos ao que estamos sujeitas - me fez repetir um cotidiano massante por anos.

Quando dei meu primeiro passo rumo à transição, ainda havia muito medo do que poderia acontecer. Antes mesmo de ter em mãos a receita médica com a dieta hormonal, precisaria ter alguma certeza, por mais remota que fosse, de que Eu poderia me adaptar às mudanças radicais que passariam a fazer parte da minha vida. Foi quando em dezembro de 2011, sai de casa pela primeira vez vestida de acordo com o gênero com o qual me identifico, maquiada, perfurmada. Quando você está acostumada a ficar somente em casa, os primeiros raios de luz te trazem um medo tamanho que foram capazes de me paralisar por uns bons 10 minutos. Era um conflito interno gigantesco, vai, não vai, vai logo, não, não vai.

Se em algum momento do passado havia dúvidas quanto a transição, em todo o tempo que passei me arrumando até a hora de virar abóbora, Eu tive a mais plena certeza de que, daquele momento em diante, meu futuro reservaria uma vida plena e feliz, bastava colocar os pés fora de casa e enfrentar o mundo. Foi o que fiz. Era uma escolha e haveria consequências, algumas conhecidas, outras não.

Em janeiro de 2012 com a receita médica em mãos, uma nova vida estava começando timidamente. Muitas vezes queria que a transição se passasse como nos vídeos que costumava ver no Youtube, uma transição em 7 ou 8 minutos. É preciso ter paciência, aprender a lidar com a angústias, frustrações, pois não tem como controlar os efeitos e as mudanças hormonais. Gostaria de ter mais quadril, de ter os ombros mais finos, ter seios maiores e por ai afora.

Com grandes poderes nascem grandes responsabilidades, e Eu precisaria ser forte o suficiente pra lutar pela minha vida. As pedras no caminho se resumiram no tratamento ainda no masculino - quando você ainda está masculinizada - e na rejeição de parte da família. Nesses momentos Eu tinha que mostrar minha força e você só descobre que é forte, quando ser forte é a sua única escolha. Abri mão de muitas coisas, segurança, tratamento digno e humano, uma vida sem constrangimentos mas em troca ganhei milhares de outras, uma vida social, amigos, maturidade, felicidade.

Quando comecei a me sentir um pouco mais confiante, passei a sair para os meus compromissos sociais como mulher, afinal Eu estava nascendo e me descobrindo em cada passo, em cada ciclo de respiração, tudo era novo e - continua - empolgante. Estava extremamente insegura em relação a tudo, não entrava em locais onde não havia estado antes, não entrava em locais com muita gente, não andava por ruas movimentadas, estava exalando insegurança.

Com o passar do tempo, comecei a ganhar confiança e a me sentir mais segura, já não estava mais tão preocupada com os outros e suas reações e sim com a minha vida e minha felicidade. Aquele friozinho na barriga toda vez que me expunha fazia parte da minha rotina - ainda faz, em menor grau - e cada lugar novo que frequentava era uma barreira quebrada, um obstáculo a menos pra superar e a adrenalina de ter conseguido vencer mais um desafio era tamanha que acabava se transformando em um ótimo motivo pra enviar um monte de emails compartilhando a conquista e começar a visualizar o nascimento desse blog, como uma forma de extravasar o que mais tarde soube se tratar da mais pura felicidade que alguém pode sentir.

Ainda sinto esse friozinho na barriga, o que é bom, me faz sentir cada vez mais viva. 

terça-feira, 16 de julho de 2013

Opinião - Paradigmas


Geralmente a primeira impressão é a que fica, e no caso das transexuais, essa primeira impressão já é formada erroneamente antes mesmo do primeiro contato.

Uma coisa é certa, a palavra transexual impõe uma série de paradigmas enraizados profundamente nessa miséria cultural e na falta de pensamento crítico. O senso comum diz que toda transexual é prostituta, toda transexual é derivada de um gay afeminado, toda transexual tem, sexualmente, que gostar de homens e mais uma vez o senso comum está ridiculamente errado. Acham que estamos presas a esse tripé, quando na verdade em toda regra há exceção - e milhares!


Dia desses fui surpreendida por uma pergunta de uma terceira feita ao meu irmão, com quem divido muito da minha vida, essa terceira havia perguntado a ele se eu só fazia programa. Qual não foi a surpresa dela ao saber que não faço e jamais tive que fazer programa pra sobreviver. Senso comum. Não consigo ter um sentimento negativo por quem na verdade merece compaixão, com quem está presa na própria ignorância. O mundo vai muito além de onde minha visão consegue alcançar, mas há quem tem a convicção que não.

Mesmo não existindo oficialmente um sistema de castas aqui no Brasil, o que acontece conosco é exatamente isso. Com muito esforço e vontade de lutar por uma vida melhor, conseguimos a recompensa, mesmo que parcial de uma vida mais digna. É importante saber que existem milhares de nós espalhadas por esse mundo e que conseguem romper essa ignorância. Não estamos amaldiçoadas a viver da maneira que não queremos, castigadas por buscar nossa felicidade, agredidas e violentadas por sermos quem somos. Existe um mundo muito melhor, é preciso força, pois às vezes ele parece estar um pouco distante.

Quando cheguei onde moro atualmente, obviamente, ela abriu o portão para que pudéssemos conversar um pouco, e antes que Eu pudesse dizer meu nome vieram as primeiras condições, então ela esperava que Eu me levantasse e fosse embora, poderia sim ter feito isso, com toda certeza, mas se naquele momento virasse as costas estaria concordando com o que o senso comum prega. As condições seriam: i) não quero quem faz programa e ii) não quero que use roupas vulgares, o lugar perfeito pra mim. A ignorância, infelizmente, comum nessa província chamada Blumenau. Um lugar bom pra viver e como a grande maioria das cidades o que acaba por transforma-la num péssimo lugar pra se morar são as pessoas e seus preconceitos.

Realmente há pessoas iluminadas, que além de afirmarem não ter preconceito, agem de coração aberto e tratam todos como iguais, apesar das diferenças que cada um carrega dentro de si. As oportunidades que essas pessoas nos proporcionam, seja numa conversa ou num simples gesto, podem ser a oportunidade que estávamos esperando pra conseguir ver o mundo de uma forma menos agressiva e mais humana.

quarta-feira, 10 de julho de 2013

Interpessoal - parte I


Não é preciso muito esforço para que as pessoas te tratem de acordo com o gênero com que você se identifica, basta um pouco de bom senso e boa vontade. Às vezes nem é preciso base, delineador, batom, sombra ect…basta pedir para quem te atende que te trate de tal forma, pra mim funcionou muito bem.



Costumo ficar muito tensa quando entro pela primeira vez num lugar, entretanto, já estive várias vezes neste mesmo laboratório, mas desta vez a diferença se resume ao tempo e às mudanças hormonais cada vez mais acentuadas. Semana que antecede consulta com endocrino é semana de exames. A última vez que estive no laboratório foi há seis meses, ainda com rosto e roupas masculinos - ok, nem tanto, e um documento que apresenta o nome de alguém que cedeu seu lugar nessa vida pra que eu pudesse viver.

Retorno ao laboratório e desta vez com rosto e roupas femininas, o oposto do que se viu algum tempo atrás. O documento continua o mesmo e esse é o momento que deveria ser constrangedor, só que não. A relação de exames com meu nome social e o documento com meu nome civil, peço pra recepcionista que na hora de me chamar, o faça pelo nome social, e assim foi, pra minha surpresa, sem constrangimentos e com minha dignidade e condição de gênero respeitadas do início ao fim da coleta de sangue.

Acho um ato tão simples de ser executado e que não requer esforço, basta um pouco de bom senso e vontade pra que todos continuem felizes, é uma linha tênue entre o céu e o inferno. As pessoas não entendem o quanto isso machuca, basta uma letra A nos verbos, adjetivos, substantivos, etc., simples assim, mas há quem insiste em não fazê-lo, e é nessa hora que o chão pode desaparecer sob seus pés, como em algumas ocasiões que passei.

Ás vezes não é preciso maquiagem e roupas femininas pra te tratarem como mulher. Basta um pedido singelo e aguardar o desfecho, apreensiva. Nas três ocasiões em que estive na clínica onde realizei a feminização facial foi assim, apenas solicitei à recepcionista que me anunciasse como Gabriella e quando estivesse liberada minha subida que também utilizasse esse nome que ecoaria por todo o saguão do prédio, mais uma vez minha solicitação foi atendida. Todos felizes, continuamos cada uma em seus afazeres.

Pude perceber que as pessoas quando querem te tratam de acordo com sua identidade de gênero, foram poucos os lugares onde tive um tratamento não digno, e são nestes lugares que não voltei a colocar os pés. Minha autoestima e dignidade são mais importantes que um sabor que pode ser reproduzido em casa ou em outro local que te trate como mereces. 

Quando ocorre de me tratarem no gênero masculino, talvez esse seja o melhor que essas pessoas conseguem fazer do alto de seus preconceitos e ignorâncias, retribuo com um sorriso, um muito obrigada e -10% na conta.

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Parâmetros


Meu modelo de uma vida feliz se resume a coisas simples, entretanto, uma delas exige um esforço sobrenatural para conquistar. Nada é impossível quando se tem em mente que a longa caminhada rumo à felicidade começa com um primeiro passo. Não tenha medo de sair da inércia, cada passo vale à pena - e muito.


Pra viver a vida normal que havia formado como parâmetro nos meus sonhos possíveis de realizar quando ainda era pequena, teria que enfrentar um grande desafio, sem dúvida o maior pelo qual alguém passa: ajustar meu corpo à minha mente. Algo me bombardeava com a imagem de felicidade, mas se, e somente se, Eu tivesse meu corpo feminino, e de fato foi isso mesmo que acabou acontecendo, meu parâmetro de felicidade estava condicionado a esse fator, super importante pra mim.

Não que Eu abri mão de ser feliz enquanto a transição não começava, mas fingia muito bem isso e fingir pro exterior é muito mais fácil do que pra si mesma. Você pode enganar uma pessoa por muito tempo, algumas por algum tempo, mas não consegue enganar a todas por todo o tempo [1]. Havia um falso parâmetro de felicidade num corpo masculino que se resumia a ser alguém que EU jamais seria: extrovertido, tagarela, másculo e desleixado, a típica imagem do macho dominante, completamente diferente da minha delicadeza, sensibilidade, feminilidade e dos meus desejos e sonhos românticos femininos.

Depois de muito tempo de castigo na solitária e uma conversa franca comigo mesma, um insight profundo me fez pensar que para que Eu soubesse se estava feminina a ponto de ter minha tão sonhada vida feliz, eu teria que fazer parte de uma amostra e isso incluiria estar inserida num grupo de mulheres, sair com elas, conviver nesse grupo, enfim, ser um item aleatório dessa amostra, o que pra mim não seria difícil graças ao convívio exclusivamente feminino na infância e parte da adolescência. O desafio agora era adequar os maneirismos e alguns pequenos detalhes para que Eu pudesse ser vista como mulher por quem estava observando o grupo pra não contaminá-lo.

Tive que escolher alguns modelos de maneirismos femininos e comecei a observar em filmes. Quem se aproximaria da imagem de mulher perfeita que Eu havia criado? Teria que ser alguém super feminina, educada, recatada mas com certa sensualidade, dentre outras características, uma Lady e apareceu uma pequena lista de modelos que serviriam pra que Eu pudesse dar início a mais essa etapa da transição. Minhas eleitas foram Tina Fey, Kate Beckinsale, Carrie-Anne Moss, Dira Paes e isso nunca teve ligação com beleza e sim com feminilidade e com o que se aproximava do meu ideal de feminino sem parecer algo exagerado, interpretativo ou caricato.

A observação foi fundamental e estes modelos me ajudaram muito a evoluir como mulher, me dando mais segurança em seguir adiante. Não foi necessário interpretar, os maneirismos eram algo que sempre foram intrínsecos à minha pessoa, só precisava começar a colocar em prática novamente e pra minha surpresa depois de apenas quatro meses todos eles estavam lá de forma natural.

Não se trata de escolher os modelos certos ou errados, apenas escolha o que te identifique, afinal o melhor parâmetro é aquele te faz uma pessoa melhor e feliz.

[1] Abraham Lincoln

terça-feira, 11 de junho de 2013

(Não) Temos vagas


Custo a acreditar que estamos fadadas ao subemprego, aos salões de beleza, à prostituição. Somos tão capazes quanto qualquer outra pessoa, entretanto é mais fácil fechar os olhos para um problema do que encarar a realidade, e é isso o que a iniciativa privada (não generalizando) nos oferece como opção, retirando nossa capacidade de viver a plenitude profissional.

Quando Eu era pequena, tinha um sonho profissional que era ser auditora. Adorava brincar de escritório, organizar papéis, lápis, canetas e emitir meus pequenos relatórios em riscos ilegíveis de quem está aprendendo a escrever. Me formei em Ciências Contábeis, estudei inglês, cursei uma pós-graduação, dedicava horas e mais horas a estudar, arregacei as mangas, fui à luta e venci.

Em 2004 consegui entrar para uma das Big 4 de auditoria, onde passei sete anos da minha vida. Vida pessoal e projetos que ficaram do lado de fora da porta quando assinei o contrato de trabalho, o que me identifica, palavra por palavra esta passagem do filme MIB Homens de Preto.

Adorava o trabalho e em meados de 2010 com as diversas ações que trouxeram à tona o tema diversidade sexual, a empresa implantou mundialmente uma política de inclusão realmente eficiente. Todos são bem-vindos, desde que sejam capazes de passar pelo processo de seleção esmagador e realmente não importava nenhuma questão de identidade de gênero, toda pessoa era uma pessoa e com suas diferenças respeitadas poderia contribuir igualmente para o desenvolvimento da empresa.

Em meados de 2011, no auge da minha crise depressiva, abri o jogo e me senti de fato acolhida e senti na pele o quanto a política de inclusão estava enraizada nas pessoas ao meu redor, embora em alguns momentos Eu não estivesse livre de brincadeiras, em outras palavras, bullying. Pude também notar a mobilização e todo o esforço que o RH e o alto escalão estavam fazendo para me ajudar durante o processo de transição. Fiz apenas dois pedidos: 1) não seria bandeira de nenhum movimento; 2) não gostaria de ter meu nome divulgado nos comunicados internos.

Embora estivesse num ambiente agradável de trabalho, para algumas pessoas a política de inclusão conflitava diretamente com suas crenças, e isso me fez pegar nojo de certas pessoas que se achavam superiores a tudo. No início de 2012 tomei a decisão mais difícil, me desliguei da empresa e segui meu rumo, entrando de cabeça nessa jornada maravilhosa da transição, trabalhei o ano de 2012 inteiro me escondendo atrás de uma farsa masculina. Como não conseguia mais me expressar ao final de 2012 optei por buscar mais uma vez meu sonho profissional, porém no serviço público.

As entrevistas de que participei posteriormente, estavam mais para um programa estilo Jô Soares, onde me recusava a responder perguntas de cunho personalíssimo e os nãos e outras desculpas esfarrapadas fizeram parte frequente da minha vida.

Atualmente dedico as horas do meu dia na busca do meu lugar ao sol no serviço público, contudo, isso não quer dizer que estarei num ambiente livre de preconceitos, onde terei aceitação incondicional, onde serei respeitada, posso estar enganada, como dizem os mais arrojados, regras são feitas para serem quebradas e no serviço público há muitas, que não serão quebradas comigo.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Invisibilidade

Às vezes parece que me perco de mim, é o que defino como minha invisibilidade, pois preciso olhar em volta para saber onde estou, o que estou fazendo ali e quem sou Eu, visível aos olhos dos outros, invisível aos meus.

Às vezes parece que me perco dentro de mim, é o que defino como minha invisibilidade, pois não me reconheço. São tantas demandas, que a máquina parece estar entrando em curto-circuito e então é preciso um tempo de recuperação para tudo voltar à normalidade.

Tenho meus dias em que gostaria de paz absoluta, sem que ninguém perguntasse por mim, sem que o telefone tocasse, sem que me notassem na rua, ficar invisível por um período curto de tempo só pra estar em contato comigo mesma e me descobrir um pouco mais a cada dia. O que gosto, o que abomino, definir minhas opiniões sobre tudo que julgo realmente importante e que possa influenciar minha vida. Fazer tudo isso sem levar em consideração a mídia alienante, um exercício de autodescoberta pura.

Os meus momentos de introspecção são assim, tenho vontade de sumir do mapa e aparecer dias depois como se nada tivesse acontecido, ficar isolada no alto de uma montanha no Tibete até que o equilíbrio volte a reinar. Essa introspecção me acompanha desde pequenina, ficar calada e pensativa, tentando não me agoniar com o futuro, para que se transforme em ansiedade, e o melhor é viver o agora. Isso sempre acontece quando tomo uma decisão e a exerço, uma decisão que vai mudar minha vida, mais uma vez, e que acaba por me gerar essa condição charlatanesca de - tentar - adivinhar o futuro.

Depois de dois ou três dias me recupero, e tudo retoma sua normalidade, a visibilidade volta. Quebro meu voto de silêncio e volto a ouvir minha própria voz, cantar minhas músicas preferidas, não me importo se o telefone toca, passo a querer mais uma vez ser notada e desejada - embora seja difícil passar desapercebida com 1,81cm, retomo meus textos. A vida volta ao normal e de repente surge um convite pra um bate papo com as amigas, o que é sempre bom.

Ser vista e lembrada é evidência mais que suficiente de vivacidade, de visibilidade, afinal quem não é visto, não é lembrado. E saio por esse mundo afora para saciar minhas necessidades humanas básicas, não sou de extravagâncias. Sendo vista ou não, o que me importa de verdade é minha paz interior, que nesse momento mágico da vida retorna ao seu equilíbrio com tudo a minha volta.

Ah vida imperfeita, não quero ser invisível todos os dias, e convenhamos, quando nem o panfleteiro te entrega o papel é sinal de que alguma coisa está muito errada.

sábado, 18 de maio de 2013

FFS - impacto psicológico

É difícil encontrar qualquer tipo de comentário, depoimento, matéria sobre o impacto psicológico que a cirurgia de feminização facial causa em quem passou pelo procedimento. Essa lacuna pode esconder armadilhas que jamais imaginaria passar - novamente.

A feminização facial foi algo com que sempre sonhei, e no último mês esse sonho, tão distante, tornou-se realidade. Não pude e ainda não consigo conter as lágrimas por ter dado um passo tão importante na transição, lágrimas de felicidade.

Um mês ficou pra trás desde a realização da cirurgia de feminização facial, o rosto continua inchado e o roxo, principalmente na região dos olhos, não quer dizer adeus, essa é parte do impacto que minha ansiedade causa em querer ver o resultado final o quanto antes. Paciência é a palavra chave, e se não a tiver, aprenderá de forma dolorosa que é preciso tempo para o corpo se recuperar e revelar o novo rosto esculpido por baixo de todo esse inchaço e roxidão.

A minha expectativa em relação ao que gostaria de ver refletido no espelho acaba causando uma confusão de sentimentos. Há momentos em que estou feliz, analisando milimetricamente as nuances reveladas pela cirurgia, há momentos em que estou triste, simplesmente não consigo ver as mudanças no rosto que o deixaram mais feminino. É, não voltei de um cruzeiro de férias, retornei de um procedimento invasivo e que requer tempo e muita paciência para me recuperar. 

Nessa euforia e nesse turbilhão de sentimentos, os sintomas da depressão parecem querer voltar a todo instante: tristeza profunda, falta de apetite, desinteresse pelas atividades antes prazerosas - dentre elas escrever - e o meu velho companheiro, o isolamento da vida social. É apenas uma fase de recuperação, inevitavelmente aconteceria, e dentro de dois ou três meses ficará no passado. E essa confusão de sentimentos me acompanhará até a aprovação no novo teste da vida real, ou seja, até que o olhar alheio me reconheça como essa nova mulher com quem durmo e acordo todos os dias da minha vida*.

Algumas vezes me vejo com os traços cada vez mais femininos, e isso, claro, me deixa com a cabeça nas nuvens e os pés no chão, outras vezes, porém, penso em não olhar o reflexo, não gostando do que verei, pelo menos nos próximos dois meses. É o resultado de uma equação dinâmica cruel, que não se importa com o tempo de acompanhamento psicológico, tampouco com sua capacidade de lidar com as adversidades dessa vida: autoestima instável ou estável + olhar diferenciado sobre a imagem no espelho = dualidade da mente - gosto ou não gosto do que estou vendo, a verdade!

Foi importante me desapegar da imagem que estava acostumada a ver nos reflexos por onde andava e tive que aprender a reconhecer a nova imagem, a nova voz, essa renascida Eu - mais uma vez.

Você espera que a cirurgia mude completamente sua vida, o que não é 100% verdade, torna-a mais fácil em alguns aspectos, por exemplo, o trato das pessoas é diferente quando te veem como mulher e, por outro lado, é embaraçoso quando você tem que mostrar um documento. Detalhes que fazem parte da vida de toda/o guerreira/o trans. Portanto, esteja preparada/o para renascer mais uma vez.

*PS.: A opinião de alguém não deve se tornar sua realidade. Me refiro ao fato de que na cidade onde moro - Blumenau/SC, a ação de me apontarem na rua incomoda demais, a ponto de me devolver os sintomas da depressão. Essa aprovação nesse novo Real Life Test me deixará sem dúvida muito mais feliz e minha qualidade de vida melhorará significativamente.

domingo, 12 de maio de 2013

Guarda-roupas

Tirar do guarda-roupas as peças que não são mais usadas e doá-las tinha um gostinho de ação beneficente e uma sensação de leveza na consciência no passado, ontem, essa mesma atitude teve um gosto de liberdade nunca sentida por mim antes, dando início a uma nova fase da minha vida, finalmente fulltime.

Algum tempo atrás alguém me falou que Eu tinha sorte em poder escolher como me vestir, se com roupas de menino ou de menina. Claro, mal sabia ela que Eu não queria escolher, queria sim, desde sempre, era me vestir confortavelmente com roupas de menina e finalmente chegou esse maravilhoso dia. Abri a porta do guarda-roupas e o lado direito onde ficavam as remanescentes peças masculinas foi esvaziada, sem pressa em deixar o passado pra trás.

Camisa por camisa, calça por calça, tudo dobrado bonitinho e acomodados em pequenos montes com destino certo: doação. Não se trata de uma doação qualquer, são as peças que passei, pelo menos, os últimos cinco anos da minha vida usando. Elas não tem um valor sentimental e não duvido que terão caimento melhor em outro corpo do que em minhas já femininas curvas que não vou mais esconder.

Me deu um alívio enorme ver que só restaram os cabides que a partir de agora irão me fazer, todos os dias, perder um bom tempo para escolher qual dos meus vestidos vou usar, principalmente os novos que acabaram de chegar. A primeira vista, depois de limpar a ala masculina há uma sensação estranha em saber que não estarão mais lá e ao mesmo tempo um sentimento de extrema felicidade por não mais estarem ali acumulando pó, espaço e hoje um leve sofrimento.
Essa doação tem um gosto de arco-íris, mágico, especial e colorido. É uma porta que se fecha para um mundo conhecido e outra que se abrirá para um mundo completamente novo e cheio de expectativas e inevitáveis frustrações.

Quando deixei a sacola na caixa de doações, não foram só as roupas que ficaram para trás, ficou também uma vida, um passado e o início de um novo futuro. Estão indo embora as roupas, algumas lembranças e meu antigo Eu. Adeus.

sábado, 4 de maio de 2013

Família - parte II

A medida que o tempo vai escorrendo e as mudanças físicas te transformam em uma pessoa completamente diferente daquela que os familiares estão acostumados a ver, a família insiste em continuar enxergando um menino onde, num passado remoto, realmente houve. Essa é uma tatuagem que você carregará, senão para sempre, mas por um longo período.


"Oi filhO…" e a repetição incontável do meu nome civil no decorrer do diálogo. É assim toda vez que o telefone toca e no identificador aparece a palavra mãe. Longas conversas que acabam por resumir um fato que me deixa incomodada: a imagem que ela tem de mim ainda é uma imagem masculina, apesar de Eu já ter passado, faz algum tempo, dessas características para as femininas, é o tempo que ela precisa - coitada - para se acostumar com a minha nova imagem.

Trata-se de uma situação completamente diferente daquela que nos acostumamos a ver no cotidiano das famílias. Um menino que nasce, rejeita a identidade de gênero biológica, reconhece, assume e busca se libertar da prisão do transtorno de identidade. O que vejo refletido no espelho é muito diferente do que qualquer membro da família vê e essa transição acaba por confundir de vez o tratamento dispensado à você. Há momentos em que te tratam como menino - a maioria deles, e outros em que te tratam como menina. Apesar dos pedidos e lembretes diários, o gênero dos verbos conjugados quando se referem a minha pessoa está sempre no masculino e meu instinto de professora de português procura corrigir o gênero da frase, pronto. Mas não é assim tão simples.

E mesmo como boa anfitriã, no primeiro beijinho ou aperto de mão de qualquer membro da família ou qualquer desconhecido, deixo claro para me tratarem no feminino e repito como um papagaio meu nome social: É Gabriella. Um pequeno guia de boa convivência. Imagino a confusão na cabeça de todos eles: como é que até ontem eu conhecia um homem e hoje ele, na verdade, é ela? Pois é, confuso de entender, dúvida perfeitamente aceitável. Vejo o constrangimento e aquela vergonha infantil em falar comigo, nos olhos de cada um deles que eventualmente encontro por esta cidade - Blumenau.

Recentemente passei uma semana na casa do meu primo, me recuperando da cirurgia. Fazia tempo não o via. Ele já sabia da transição há algum tempo e assim que cheguei, pra minha frustração, foi nome civil pra cá e pra lá. Nenhuma pergunta invasiva ou comentário descabido. Um breve esclarecimento sobre a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. De qualquer forma fico feliz por ter me tratado como sempre, dispensando a atenção necessária e me deixando à vontade.


Com o avanço da transição o convívio foi ficando gradativamente mais difícil com algumas pessoas - já era mais que esperado, aquelas que não aceitam sob hipótese nenhuma. Por sorte, tenho uma família bem-resolvida, pelo menos a maior parte dela. E essa porção apoia (in)condicionalmente a minha decisão e o meu projeto Felicidade Plena. Só tenho uma pequena queixa: continuam me tratando como menino, repetidamente. Essa é a verdade visceral, mas não é a realidade. A verdade é universal, e a realidade é pessoal. 

Jamais tivemos muito contato com os parentes de 2o grau em diante e isso continua atualmente, ou seja, ninguém procura ninguém. A vantagem é que não precisei me esconder ou fugir para o interior de algum estado nos confins desse país continental - e não o faria,  pra passar pela transição. Apesar da dificuldade que imagino todos eles passem por não saber ao certo como me tratar, mesmo com todos os pedidos e esclarecimentos, ainda assim, fico feliz, por pelo menos ter uma família que não me abandonou.

Te tratarem como um menino poderá ser a tatuagem que você carregará pelo resto dos dias, não importa quão feminina você estiver, é assim que eles te vêem, e, a não ser por um golpe de sorte do destino, é assim que te tratarão para todo o sempre. Tomara que não.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Cirurgias, corpo e recuperação


Qualquer cirurgia por menor que seja é um procedimento invasivo e requer cuidados seguidos à risca para uma recuperação confortável.

Realizada a FFS e a mamoplastica de aumento a vida segue o mesmo rumo, ainda não sei se com maiores ou menores dificuldades. A única certeza até agora, nesta fase da recuperação é o aumento exponencial da minha felicidade por conseguir alcançar minha liberdade condicional.

São duas semanas completas da realização da feminização facial e mamoplastia de aumento. Os resultados ainda estão escondidos sob o inchaço do rosto e das mamas que revelar-se-ão com o passar do tempo. Seis meses é o tempo necessário para que todo o inchaço abandone os locais cirurgiados, até lá as expectativas para revelar meu novo rosto feminino dominarão meu senso.

Acreditava que as dores seriam maiores na região da face, me enganei redondamente, não senti absolutamente nada de dor no rosto, apenas o incômodo causado pelo inchaço. As próteses mamárias foram colocadas atrás do músculo peitoral, local que causa as piores dores porém o resultado é muito mais natural. Todo movimento feito com o tronco exige algum esforço, por menor que seja, da musculatura peitoral e qualquer estimulo causa um pouco de dor na região da prótese. A primeira semana foi a pior, pois não conseguia me deitar e quando tinha que levantar ou simplesmente arrumar a postura a dor era inevitável. 

No quinto dia após a realização da cirurgia abandonei os analgésicos, pois a dor passou a ser mais suportável sem a necessidade de me dopar para aguentá-la. Hoje, duas semanas após, consigo me movimentar tranquilamente sem dor, estou seguindo à risca as orientações médicas para evitar complicações e ter uma recuperação confortável. Os pontos da FFS foram retirados na sexta-feira (26/abr) e os pontos das mamas não causam desconforto e serão absorvidos naturalmente pelo corpo nos próximos dois meses.

A pior sensação no pós-cirurgico foi sentir a perda total do fôlego. Adoro correr e na semana anterior a cirurgia corri três dias intercalados um total de 45km. Uma semana após a cirurgia não consegui andar três quadras sem parar, me assustei mas logo me conformei de que é assim mesmo que o corpo reage após um procedimento invasivo que é uma cirurgia. Nada de esforço físico e nada de sol pelas próximas seis semanas, muito repouso e alimentação balanceada.

A limitação de movimentos dos braços é mais uma coisa que incomoda no pós-cirurgico da mamoplastia. Dá uma certa sensação de impotência não conseguir se vestir sozinha. Sou muito receosa com relação a dor e aos cuidados, e aos poucos você se adapta temporariamente e devagar pode ir começando a movimentar normalmente os braços com os devidos cuidados para não prejudicar o resultado da intervenção, nada de movimentos bruscos, erguer os braços além da linha do ombro está mais que proibido, dirigir então, nem pensar.

No final das contas correu tudo bem, a recuperação está sendo ótima, sem dores e com poucos incômodos físicos. Agora é esperar e realizar a última cirurgia, SRS no ano que vem e passar por tudo isso de novo. Se tudo isso vale a pena? Depende do quão importante é para si própria a tua felicidade, paz de espírito e a redução/eliminação do desconforto que o apetite desse dragão voraz do transtorno de identidade de gênero causa.

sábado, 13 de abril de 2013

Canteiro de obras

Endócrino, psiquiatra, psicóloga, dermatologista, fonoaudióloga, cirurgiões. Cada um responsável por uma parte do processo de construção e reforma de uma nova pessoa, que envolve, ainda, a reformulação de uma nova identidade. O canteiro de obras que é o processo de transição.

Toda reforma dá a impressão de que o seu fim jamais chegará. Você não vê a hora de tudo, finalmente, poder voltar ao seu lugar original. Chega de poeira, Chega de plásticos cobrindo tudo. Sim, existe um fim e sua distância depende diretamente da sua ansiedade. Com a transição não é diferente, é tudo um pouco provisório: a dor nas mamas, o formato delas como no início da puberdade feminina, a fisionomia antes da FFS, a voz, o formato do corpo etc.

Sua família vai comentar e dar opiniões, seus amigos - pelo menos os mais próximos - farão a mesma coisa e, você, que é o objeto de toda essa obra ouvirá, nem sempre com atenção, as sugestões que estas mesmas pessoas não tiveram coragem de colocar em prática em suas próprias vidas. Faz a sobrancelha bem fina, eu deixaria um traço masculino bem evidente quando fizesse a FFS, eu malharia pra ficar bem forte. Não, eles não fariam isso se estivessem na sua pele.

Essa obra é dolorosa, mas é extremamente gratificante olhar as fotos da evolução mensal, e ver quanta diferença pode ser notada em pouco tempo. A progressão na maquiagem, na forma de vestir, o comportamento que vai se moldando à sua personalidade. E você ganha o dia quando, mais uma vez, vai até uma consulta e o/a médico/a te elogia dizendo coisas tão simples, mas que fazem uma diferença enorme na autoestima. Nossa, como você está feminina. Não consigo mais associar aquela imagem da primeira consulta contigo. Definitivamente não são a mesma pessoa.

As coisas começam a ficar mais fáceis após um ano. A aparência fica mais pra feminina e cada vez mais os traços vão se refinando, os hormônios em conjunto com o laser fazem rapidamente - a partir de dez ou onze meses - a eliminação dos pêlos indesejáveis, o corpo assume curvas bem definidas, a massa muscular diminui significativamente, mesmo para quem treinou pesado musculação, essa é a parte de fora da obra, o que todos vêem.

Internamente também há muito trabalho árduo a ser feito. Aprender a lidar com as mudanças de humor que a testosterona pode causar, entender melhor os sentimentos e as novas reações que você só descobre quando passa por alguma situação em que são exigidas. Aos poucos, ir moldando essa nova identidade que nasce da necessidade de adequar corpo e mente.

Deixei minhas expectativas do lado de fora, eram muitas e sabia que se alguma mudança não estivesse milimetricamente assimétrica conforme minhas expectativas, a frustração acabaria com minha autoestima e até mesmo com o melhor dos profissionais. Chegou um momento em que o mais importante seria ter rosto e corpo femininos aos meus olhos míopes e foi isso que consegui, o melhor resultado possível com os melhores profissionais disponíveis e acessíveis. 

Agora que a obra está quase acabando, chega de fazer aquela cara de Desculpe o transtorno, estou fechada para reformas.

domingo, 7 de abril de 2013

Amigo de verdade

Amigo de verdade não é aquele que fala algo pra te agradar, mas aquele que fala a verdade que dói, esteja você preparada ou não.

Sempre fui uma pessoa solitária e com pouquíssimos amigos - não me serve, ter mil deles no facebook e falar de fato com 4 ou 5. Ultimamente tenho dado mais importância ao meu círculo de amizades, contatos por telefone, email, uma visita de vez em quando pra colocar o papo em dia e renovar o voto silencioso desse laços que perduram para sempre quando a amizade é verdadeira.

Com frequência acabo limpando a lista telefônica do celular e a lista de contatos de email. É o momento em que percebo quem são essas pessoas que estão guardadas no meu coração e que jamais serão apagadas da minha memória. São aquelas pessoas que fizeram a diferença pra mim em algum momento da minha vida, fosse ele bom ou ruim. Basta ler o nome na lista e logo me lembro dos momentos mais marcantes que passei ao lado delas, é só fechar os olhos e reviver o passado.

Costumo dizer que tive a sorte de conhecer pessoas maravilhosas ao longo desses últimos dois anos, algumas com quem mantenho contato frequentemente e outras que, mesmo não  falando frequentemente, deixaram sua contribuição na minha vida. Foram muitos almoços, jantares, cinemas, ótimas risadas, conselhos valiosos, verdades ditas, lágrimas, abraços apertados, conversas sérias, silêncio cúmplice. 

Amigo de verdade é aquele que diz que não gostou do seu modelito hoje, esse mesmo que você levou horas escolhendo, é aquele que mesmo sabendo da sua fragilidade não hesita em falar o que você precisa ouvir, é aquele que não esconde o descontentamento com alguma atitude sua, que se recusa a mentir só pra ter ver sorrir. Amigo de verdade não mente, fala olhando nos seus olhos sempre, muda o tom da voz, e no fim te dá um abraço e um sorriso que te reconforta e coloca tudo nos eixos novamente, não deixando que você se perca nesse mundo de faz-de-conta.

Amigo de verdade não se importa se você tem um jeito vida louca de ser, se você é mais reservada e fez voto de silêncio em alguma circunstância secreta no passado, se não fala coisa com coisa, ou se fica dando aulas de física quântica ao invés de falar sobre a vida. Amigo de verdade não importa em ouvir pela décima vez sua conversa monotemática, não se importa em pagar mico ao seu lado. Um verdadeiro amigo é alguém que pega a sua mão e toca o seu coração. [1]

Minha singela homenagem aos meus amigos do coração.

[1] Gabriel Garcia Marquez

terça-feira, 2 de abril de 2013

Família - parte I

Mesmo nas famílias menos religiosas o preconceito existirá em maior ou menor grau, não se iluda com a possibilidade da aceitação instantânea do processo de transição, pessoas extremamente evoluídas e compreensíveis estão escassas. Cada um tem o seu tempo: semanas, meses, anos ou o resto dos dias da vida.


A convivência diária acaba por nos mostrar a previsibilidade das reações que cada membro da família terá em relação a qualquer assunto. Se for um assunto light a reação é previsível, se for um assunto pesado a reação também é previsível. Assim que me sentei à mesa para comunicar o início da transição, já imaginava qual seria a reação de todos eles, quais precisariam de mais tempo e quais precisariam de menos tempo para digerir a informação. Jamais esperei receber um tapinha nas costas com um comentário do tipo: essa é minha nova filha ou isso não muda nada.

Nada ficou no lugar. Não foi Eu quem mudou, mas a forma com que os outros passariam a me ver, e para sempre. O mais difícil não foi falar, o discurso já estava pronto e cheio de recursos visuais para ilustrar com clareza o que aconteceria daquele momento em diante. Acalmem-se, não é uma doença terminal ou incapacitante. Eu não morreria - pra mim, apenas deixaria de ser, fisicamente, a mesma pessoa que eles viram crescer e que conviveram por muito tempo. Tempo o suficiente para saber que não haveria uma segunda opção, um plano B. Continuaria a detestar futebol, pesca, perder as manhãs de domingo na frente da tv, mas continuaria a adorar cozinha, passeios na praia e boas risadas, só que a partir de agora, temporariamente andrógina.

Em menos de 10 minutos tudo parecia estar esclarecido. E Eu, que sempre detestei falar em público, dessa vez queria poder falar por mais tempo. O diálogo chegou ao fim no Todos entenderam? Alguém tem alguma pergunta? E ninguém levantou a mão. Olhares perdidos no horizonte, um silêncio constrangedor se instalou por alguns infinitos segundos, choro copiosamente infantil e orações para me "livrar de todo o mal". Pronto, agora era esperar e, aos poucos, ir colhendo as verdades e as mentiras.

Nos meses seguintes, todos pareciam ter, da noite pro dia, se tornados mestres em ignorar os fatos, fingir que não havia nada acontecendo, que tudo estava normal, desde que não se pronunciassem as palavras hormônio, seios, dores, TPM e outras. A transição tornou-se assunto proibido naquela casa. Todos viam as mudanças, mas ninguém tocava no assunto. Ninguém queria ser o traidor. A primeira vez que o assunto ressurgiu, estava com 9 meses de HRT, inúmeras mudanças físicas visíveis e foram apenas duas ou três frases, nada além de Você tem certeza? e As vezes a gente pede com fé e não é atendido.

Ainda hoje, 2 anos após essa conversa que mudou drasticamente nossas vidas - a minha pra melhor, há quem ainda não conseguiu digerir a transição. Previsível. Longe de ser uma imposição, uma cobrança, uma frustração, ansiedade, entendo perfeitamente que cada um tem o seu tempo. Me sinto privilegiada por ter essa família perfeita dentro de sua imperfeição. Não é nenhuma família de novela das 8, mas renderia uma boa história para contar.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Sobre o tempo - parte I


O tempo passa rápido demais para ser desperdiçado com coisas fúteis, inúteis, tão irrelevantes quanto remoer lembranças sabendo que os atos do passado não podem ser modificados. Permitasse viver intensamente cada segundo, errar, acertar e ter dúvidas, isso tudo faz parte do cotidiano.


Sou taurina e uma das características desse signo é pensar demais, e pensar demais demanda muito tempo. Certa ocasião ouvi esta frase de uma pessoa com quem trabalhei durante 3 anos: "Quem muito pensa, nada faz!". Confesso que não sei qual seria minha reação se tivesse ouvido essa frase alguns anos antes, mas o fato é, que o momento crucial do olho no olho me fez acordar para a transição. E então um dia, descobri que 10 anos ficaram pra trás.

O atraso para o início da HRT tinha sempre um fator condicionante, traduzido em duas letrinhas: SE. Se acontecer isso Eu faço, se acontecer aquilo não faço, vou tirar a sorte no palitinho. Procrastinar só me trouxe certa amargura - superada, pelo tempo perdido em que não vivi de acordo com minha identidade de gênero, mas ainda há tempo suficiente para aproveitar plenamente tudo aquilo com que sonhei nos longos 30 anos da minha vida. Sim, ainda há tempo para cultivar um amor, ainda há tempo para visitar amigos e parentes, ainda há tempo de sobra para fazer minha tão sonhada faculdade de gastronomia, ler bons livros, voltar a ter aulas de guitarra, torrar ao sol no verão escaldante, curtir um bom restaurante, perder a noção do tempo conversando madrugada adentro.

E lá se foram 1 ano e 2 meses da HRT. Uma vida que se encerrou e uma nova vida que começou a pouco tempo, e muito melhor. Posso afirmar que já nasci adulta, sem pai nem mãe, passei novamente pela puberdade, fiz muitas coisas na minha nova adolescência e descobri outras tantas. Agora estou chegando até minha idade biológica. Responsável, madura, com senso de humor e o mais importante: feliz. Preparada para alcançar meus sonhos, focada nos meus objetivos, olhando a paisagem pela janela enquanto o tempo voa e o mais importante: protagonizando minha própria história.

Quando alguém me pergunta sobre o momento de iniciar a HRT, digo: A hora certa é quando você estiver realmente, psicológica e emocionalmente preparada para lidar de maneira madura, com as adversidades da vida, a rejeição, o preconceito e também com as alegrias que surgem nos pequenos detalhes dessa jornada emocionante rumo à vida. Cada um sabe o seu tempo, pra mim foram necessários 30 anos e a mais avassaladora crise de depressão, para abrir meus olhos para a verdade. Tudo isso serviu de inspiração para uma vida melhor, para um querer melhor, para me tornar uma pessoa melhor.

Se soubesse antes o que sei agora, erraria tudo exatamente igual.

terça-feira, 19 de março de 2013

Persona non grata

O lado bom de ser persona non grata é, não ter mais a obrigação de ir à programas de índio, confraternizações de família, só porque o fulano ou o sicrano estarão lá, e sua família impõe sua presença - se você não for fica chato. Alguém talvez lembrará de te convidar e pode ter certeza, de que o assunto da rodada (dessa e de todas as próximas),  será, exclusivamente, Você.

Me tornar persona non grata apenas mudou o destino das minhas viagens quinzenais, me tirando de um lugar onde me sentia obrigada a frequentar, para um lugar onde quero, por vontade própria, estar todos os dias: minha própria vida.

Recentemente descobri que me tornei uma anticristo para a parte ortodoxo-cristã-ateu da família. A sanção imposta foi apenas um indicador simbólico de descontentamento, do desgosto com a minha presença, pela evidente feminização das características físicas, dos trejeitos, da voz e até do vocabulário, cumpro meu exílio longe das fronteiras daquela cidade.

Mantenho uma relação diplomática a fim de evitar conflitos armados e quem sabe o início da terceira guerra mundial, explosão da bomba atômica.  Sim, senhor! Não, senhor! Agora é minha vez de experimentar a sensação de liberdade, sentir o vento no rosto, chega de passividade bovina, prestes a ser abatida e não lutar pela vida.

Poderia ter pelo menos um motivo justo ou uma chance para que eu pudesse me defender, se bem que resultaria em uma conversa com conclusões vazias da outra parte. A Convenção de Viena foi seguida à risca, com todos os seus protocolos e minha expulsão do coração e das lembranças decorando o aparador da sala. A vida segue sorridente.

Curto com o maior prazer meu exílio. Vou onde quero, minhas amizades não são mais questionadas, sou respeitada. Admito: não é coragem. É viver a vida enfrentando as escolhas, é olhar para trás e ver que venci meus maiores medos com um sorriso capaz de iluminar a China, de tão poderoso, é ser feliz da maneira mais pura e sublime possível.

Nada me dá mais prazer do que ser persona non grataexpulsa do paraiso, uma mulher sem juízo, que não se comove com nada, cruel e refinada, que não merece ir pro céu, uma vilã de novela, mas bela, e até mesmo culta, estranha, com tantos amigos e amada, bem vestida e respeitada. Aqui entre nós, melhor que ser boazinha é não poder ser imitada [1].

[1] Martha Medeiros.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Montanha-russa


Os hormônios transformaram meus sentimentos em uma montanha-russa. No começo, uma subida íngreme apontando para o céu e uma vista maravilhosa, o vento batendo no rosto, sensação de liberdade. Em busca de emoção, aproveito para curtir o momento. Alguns metros adiante, uma descida vertiginosa que te tira do assento e troca todos os órgãos de lugar. A mudança do antiandrógeno três semanas atrás, desencadeou pela primeira vez esse processo de sobe-e-desce, loopings sentimentais numa velocidade alucinante. 

Andar na montanha-russa provoca reações de um misto de medo e excitação. Na primeira semana após a troca do medicamento, o medo fez as borboletas no estômago se agitarem, medo de que a testosterona escalasse os trilhos e me devolvesse parte, do muito que já ficou no caminho. Senti vontade de erguer os braços e gritar até perder o fôlego.

A pior sensação não é a montanha-russa em si, mas a expectativa da espera das reações com a mudança. Não sei mais como conjugar este verbo, se no presente ou no passado, Eu costumo/costumava ser uma pessoa controlada, zen. Em momento algum imaginei que certas emoções pudessem fugir ao meu controle. Cada vez que o trem desabava, junto estavam meus sentimentos. O primeiro looping, uma curva acentuada para a esquerda e outra para a direita, mais um looping e segue a loucura hormonal.

A segunda semana me dava a sensação de que seria lançada no abismo, que demoraria uma eternidade para chegar ao fim do passeio. Essas duas semanas me mostraram que mulher é bicho complicado e a explicação toda está na testosterona, ou melhor, na quase ausência dela.

A parte mais gostosa da transição são as próximas curvas, o que ainda está por vir, as descobertas de uma nova vida, de sentimentos que não me permitia sentir de tão ofuscada que estava minha visão em relação à vida e que imagino foram trazidos à flor da pele com as "pílulas da felicidade", como costumo chamar carinhosamente meus hormônios.

A terceira semana, que se encerrou no domingo (10/mar/13) foi sem dúvida a pior desde o início da transição. E em questão de segundos, o percurso acaba e Eu não me lembrava mais de todos aqueles sentimentos que antecederam o fim do trajeto, a adrenalina ainda corre pelas veias, dou gargalhadas sem saber o porquê, pois isso é viver. E foi assim que me senti quando finalmente abri os olhos e desci do carrinho.

Hormônios...essa montanha-russa.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Não temos outro mundo para o qual nos mudar


Chegou um determinado momento da vida em que me flagrei sem resposta para uma pergunta trivial que havia anos me fazia: O que quero dessa vida? Para mim, jamais foi uma questão filosófica, ou uma pergunta que demonstrasse que Eu estivesse à deriva, simplesmente estava me desapegando do que é desnecessário para ser feliz, tentando achar algum sentido para que não me transformasse apenas em uma fotografia e em uma lembrança que se perderia na insensibilidade do tempo.

O que Eu queria de verdade sempre que conseguia chegar em uma resposta, era me mudar para outro mundo, mas que fosse um onde tivesse, pelo menos, um salão de beleza, um shopping, uma boa academia, um barzinho e uma ótima biblioteca. Não deixaria de ser urbana, não deixaria de me cuidar. Teria minhas crises de TPM todos os meses, me sentiria deprimida e alegre, eufórica e apática, entusiasmada e distante. Distante de tudo de ruim que poderia acontecer.

Quero acreditar que poderia viver plenamente meu Eu, ninguém ficaria me despindo com o olhar, ou talvez ficassem, porque continuaria sendo diferente, porém, de outra maneira. Mas seria meu mundo, digno de quem não tem preconceitos, pelo menos não transfóbico. Poderia andar tranquilamente pelas crateras, flutuar como uma pluma, e não me ouviriam pedir por socorro. "Houston, we have a problem!".

Ainda quero acreditar que meu mundo seja aqui, mas meu mundo na verdade é onde me sinto bem, onde me sinto segura, onde tenho meus direitos e minha dignidade respeitados, ou seja, talvez em algum outro país deste mundo onde vivemos, talvez no estado vizinho, talvez do outro lado do mundo, talvez em outro mundo mesmo. Talvez, talvez, talvez…incertezas, na esperança de que serão logo resolvidas.

E quando me perguntassem se estaria de malas prontas para deixar todas as minhas experiências aqui e começar uma vida nova, em um mundo onde nada seja certo. Com certeza. Levaria meus vestidos e meus poucos, porém, surrados e valiosos livros, tomara que seja quente, mas não muito, para não me sufocar. Abriria mão do conforto e da falsa segurança, mas teria a dignidade que a Constituição e a sociedade me negam aqui, não seria tratada como uma anomalia, seria tratada com o mesmo respeito que as demais pessoas merecem.

Meu novo mundo seria um lugar onde tomaria banho de chuva, seria um mundo onde não existiria discriminação, seria um lugar florido, repleto de música e poesia, não existiria tristeza, nem depressão. Haveria muita dignidade, respeito e muita cor. Seria um lugar agradável e aconchegante, completamente diferente do mundo em que vivo atualmente.

Mas a verdade, como escreveu Gabriel Garcia Marquez, é que "não temos outro mundo para o qual podemos mudar".[1]

[1] Gabriel Garcia Marquez