segunda-feira, 25 de março de 2013

Sobre o tempo - parte I


O tempo passa rápido demais para ser desperdiçado com coisas fúteis, inúteis, tão irrelevantes quanto remoer lembranças sabendo que os atos do passado não podem ser modificados. Permitasse viver intensamente cada segundo, errar, acertar e ter dúvidas, isso tudo faz parte do cotidiano.


Sou taurina e uma das características desse signo é pensar demais, e pensar demais demanda muito tempo. Certa ocasião ouvi esta frase de uma pessoa com quem trabalhei durante 3 anos: "Quem muito pensa, nada faz!". Confesso que não sei qual seria minha reação se tivesse ouvido essa frase alguns anos antes, mas o fato é, que o momento crucial do olho no olho me fez acordar para a transição. E então um dia, descobri que 10 anos ficaram pra trás.

O atraso para o início da HRT tinha sempre um fator condicionante, traduzido em duas letrinhas: SE. Se acontecer isso Eu faço, se acontecer aquilo não faço, vou tirar a sorte no palitinho. Procrastinar só me trouxe certa amargura - superada, pelo tempo perdido em que não vivi de acordo com minha identidade de gênero, mas ainda há tempo suficiente para aproveitar plenamente tudo aquilo com que sonhei nos longos 30 anos da minha vida. Sim, ainda há tempo para cultivar um amor, ainda há tempo para visitar amigos e parentes, ainda há tempo de sobra para fazer minha tão sonhada faculdade de gastronomia, ler bons livros, voltar a ter aulas de guitarra, torrar ao sol no verão escaldante, curtir um bom restaurante, perder a noção do tempo conversando madrugada adentro.

E lá se foram 1 ano e 2 meses da HRT. Uma vida que se encerrou e uma nova vida que começou a pouco tempo, e muito melhor. Posso afirmar que já nasci adulta, sem pai nem mãe, passei novamente pela puberdade, fiz muitas coisas na minha nova adolescência e descobri outras tantas. Agora estou chegando até minha idade biológica. Responsável, madura, com senso de humor e o mais importante: feliz. Preparada para alcançar meus sonhos, focada nos meus objetivos, olhando a paisagem pela janela enquanto o tempo voa e o mais importante: protagonizando minha própria história.

Quando alguém me pergunta sobre o momento de iniciar a HRT, digo: A hora certa é quando você estiver realmente, psicológica e emocionalmente preparada para lidar de maneira madura, com as adversidades da vida, a rejeição, o preconceito e também com as alegrias que surgem nos pequenos detalhes dessa jornada emocionante rumo à vida. Cada um sabe o seu tempo, pra mim foram necessários 30 anos e a mais avassaladora crise de depressão, para abrir meus olhos para a verdade. Tudo isso serviu de inspiração para uma vida melhor, para um querer melhor, para me tornar uma pessoa melhor.

Se soubesse antes o que sei agora, erraria tudo exatamente igual.

terça-feira, 19 de março de 2013

Persona non grata

O lado bom de ser persona non grata é, não ter mais a obrigação de ir à programas de índio, confraternizações de família, só porque o fulano ou o sicrano estarão lá, e sua família impõe sua presença - se você não for fica chato. Alguém talvez lembrará de te convidar e pode ter certeza, de que o assunto da rodada (dessa e de todas as próximas),  será, exclusivamente, Você.

Me tornar persona non grata apenas mudou o destino das minhas viagens quinzenais, me tirando de um lugar onde me sentia obrigada a frequentar, para um lugar onde quero, por vontade própria, estar todos os dias: minha própria vida.

Recentemente descobri que me tornei uma anticristo para a parte ortodoxo-cristã-ateu da família. A sanção imposta foi apenas um indicador simbólico de descontentamento, do desgosto com a minha presença, pela evidente feminização das características físicas, dos trejeitos, da voz e até do vocabulário, cumpro meu exílio longe das fronteiras daquela cidade.

Mantenho uma relação diplomática a fim de evitar conflitos armados e quem sabe o início da terceira guerra mundial, explosão da bomba atômica.  Sim, senhor! Não, senhor! Agora é minha vez de experimentar a sensação de liberdade, sentir o vento no rosto, chega de passividade bovina, prestes a ser abatida e não lutar pela vida.

Poderia ter pelo menos um motivo justo ou uma chance para que eu pudesse me defender, se bem que resultaria em uma conversa com conclusões vazias da outra parte. A Convenção de Viena foi seguida à risca, com todos os seus protocolos e minha expulsão do coração e das lembranças decorando o aparador da sala. A vida segue sorridente.

Curto com o maior prazer meu exílio. Vou onde quero, minhas amizades não são mais questionadas, sou respeitada. Admito: não é coragem. É viver a vida enfrentando as escolhas, é olhar para trás e ver que venci meus maiores medos com um sorriso capaz de iluminar a China, de tão poderoso, é ser feliz da maneira mais pura e sublime possível.

Nada me dá mais prazer do que ser persona non grataexpulsa do paraiso, uma mulher sem juízo, que não se comove com nada, cruel e refinada, que não merece ir pro céu, uma vilã de novela, mas bela, e até mesmo culta, estranha, com tantos amigos e amada, bem vestida e respeitada. Aqui entre nós, melhor que ser boazinha é não poder ser imitada [1].

[1] Martha Medeiros.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Montanha-russa


Os hormônios transformaram meus sentimentos em uma montanha-russa. No começo, uma subida íngreme apontando para o céu e uma vista maravilhosa, o vento batendo no rosto, sensação de liberdade. Em busca de emoção, aproveito para curtir o momento. Alguns metros adiante, uma descida vertiginosa que te tira do assento e troca todos os órgãos de lugar. A mudança do antiandrógeno três semanas atrás, desencadeou pela primeira vez esse processo de sobe-e-desce, loopings sentimentais numa velocidade alucinante. 

Andar na montanha-russa provoca reações de um misto de medo e excitação. Na primeira semana após a troca do medicamento, o medo fez as borboletas no estômago se agitarem, medo de que a testosterona escalasse os trilhos e me devolvesse parte, do muito que já ficou no caminho. Senti vontade de erguer os braços e gritar até perder o fôlego.

A pior sensação não é a montanha-russa em si, mas a expectativa da espera das reações com a mudança. Não sei mais como conjugar este verbo, se no presente ou no passado, Eu costumo/costumava ser uma pessoa controlada, zen. Em momento algum imaginei que certas emoções pudessem fugir ao meu controle. Cada vez que o trem desabava, junto estavam meus sentimentos. O primeiro looping, uma curva acentuada para a esquerda e outra para a direita, mais um looping e segue a loucura hormonal.

A segunda semana me dava a sensação de que seria lançada no abismo, que demoraria uma eternidade para chegar ao fim do passeio. Essas duas semanas me mostraram que mulher é bicho complicado e a explicação toda está na testosterona, ou melhor, na quase ausência dela.

A parte mais gostosa da transição são as próximas curvas, o que ainda está por vir, as descobertas de uma nova vida, de sentimentos que não me permitia sentir de tão ofuscada que estava minha visão em relação à vida e que imagino foram trazidos à flor da pele com as "pílulas da felicidade", como costumo chamar carinhosamente meus hormônios.

A terceira semana, que se encerrou no domingo (10/mar/13) foi sem dúvida a pior desde o início da transição. E em questão de segundos, o percurso acaba e Eu não me lembrava mais de todos aqueles sentimentos que antecederam o fim do trajeto, a adrenalina ainda corre pelas veias, dou gargalhadas sem saber o porquê, pois isso é viver. E foi assim que me senti quando finalmente abri os olhos e desci do carrinho.

Hormônios...essa montanha-russa.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Não temos outro mundo para o qual nos mudar


Chegou um determinado momento da vida em que me flagrei sem resposta para uma pergunta trivial que havia anos me fazia: O que quero dessa vida? Para mim, jamais foi uma questão filosófica, ou uma pergunta que demonstrasse que Eu estivesse à deriva, simplesmente estava me desapegando do que é desnecessário para ser feliz, tentando achar algum sentido para que não me transformasse apenas em uma fotografia e em uma lembrança que se perderia na insensibilidade do tempo.

O que Eu queria de verdade sempre que conseguia chegar em uma resposta, era me mudar para outro mundo, mas que fosse um onde tivesse, pelo menos, um salão de beleza, um shopping, uma boa academia, um barzinho e uma ótima biblioteca. Não deixaria de ser urbana, não deixaria de me cuidar. Teria minhas crises de TPM todos os meses, me sentiria deprimida e alegre, eufórica e apática, entusiasmada e distante. Distante de tudo de ruim que poderia acontecer.

Quero acreditar que poderia viver plenamente meu Eu, ninguém ficaria me despindo com o olhar, ou talvez ficassem, porque continuaria sendo diferente, porém, de outra maneira. Mas seria meu mundo, digno de quem não tem preconceitos, pelo menos não transfóbico. Poderia andar tranquilamente pelas crateras, flutuar como uma pluma, e não me ouviriam pedir por socorro. "Houston, we have a problem!".

Ainda quero acreditar que meu mundo seja aqui, mas meu mundo na verdade é onde me sinto bem, onde me sinto segura, onde tenho meus direitos e minha dignidade respeitados, ou seja, talvez em algum outro país deste mundo onde vivemos, talvez no estado vizinho, talvez do outro lado do mundo, talvez em outro mundo mesmo. Talvez, talvez, talvez…incertezas, na esperança de que serão logo resolvidas.

E quando me perguntassem se estaria de malas prontas para deixar todas as minhas experiências aqui e começar uma vida nova, em um mundo onde nada seja certo. Com certeza. Levaria meus vestidos e meus poucos, porém, surrados e valiosos livros, tomara que seja quente, mas não muito, para não me sufocar. Abriria mão do conforto e da falsa segurança, mas teria a dignidade que a Constituição e a sociedade me negam aqui, não seria tratada como uma anomalia, seria tratada com o mesmo respeito que as demais pessoas merecem.

Meu novo mundo seria um lugar onde tomaria banho de chuva, seria um mundo onde não existiria discriminação, seria um lugar florido, repleto de música e poesia, não existiria tristeza, nem depressão. Haveria muita dignidade, respeito e muita cor. Seria um lugar agradável e aconchegante, completamente diferente do mundo em que vivo atualmente.

Mas a verdade, como escreveu Gabriel Garcia Marquez, é que "não temos outro mundo para o qual podemos mudar".[1]

[1] Gabriel Garcia Marquez

segunda-feira, 4 de março de 2013

Gritos do silêncio


Estou muito longe de ser uma revolucionária, alguém que defende com unhas e dentes uma opinião, não considero isso falta de personalidade, sei o que quero da vida, batalho, dias após dia, para alcançar meus objetivos, poucos mas suficientes. Se tem algo que me deixa estressada, é ter que conviver com uma pessoa, seja por questão profissional ou pessoal, mal-humorada, explosiva, que não consegue distinguir a linha tênue entre falar e gritar. Esse tipo de pessoa me deixa com uma sensação de que Eu fui o gatilho que disparou tal irritação.

Talvez essa sensação seja, ainda, resquício da criação severa a que Eu e meu irmão fomos submetidos. Sempre pensava que Eu era a origem de todos os problemas, de todo o mal-humor, de todo estress em casa. Esse achismo se perdeu quando recuperei minha autoestima, não faz muito tempo. Só de pensar em ter que conversar com alguém que acabou de desligar o telefone dando uma bronca no interlocutor, ou simplesmente acordou de ovo virado ainda me deixa trêmula.

Detesto discussão, conversas acaloradas que mais se assemelham a um bate-boca, prefiro a paz do meu silêncio, não argumentar e antecipar o fim de qualquer diálogo que ocorra acima de 60 decibéis, afinal, não quero ter razão, quero é ser feliz. Quando tenho a opção de dar as costas e seguir meu rumo, faço-o, sem receio algum de receber um rótulo, qualquer que seja, que não muda a minha opinião sobre quem sou ou deixo de ser.

Minha paz é mais importante que ganhar um discussão no argumento, aliás ganha quem grita mais. Gosto do silêncio do papel e caneta e da agitação da mente para poder argumentar, e esse ato de escrever acabou por se transformar em minha terapia. Não que Eu evite convívio social, gosto de estar perto de pessoas alegres e divertidas, tenho a sorte de conhecer muitas, mas às vezes sinto a necessidade de me recolher e colocar no papel tudo que estou sentindo e pensando.

Meu tom de discurso sempre foi ameno, da mesma forma que falo e escrevo, suscinto, dando preferência sempre para o lado bom das situações. Não acho que o mundo é cor-de-rosa, mas as situações e sentimentos ruins compartilho com quem estudou para me ajudar a ver que os obstáculos são tão grandes quanto nossos próprios medos, perdi o medo do futuro, vivendo intensamente o presente. 

Amanhã é outro dia e nada será igual.