domingo, 23 de dezembro de 2012

Distância

Em algum momento da minha história me perdi de mim mesma, e naquele exato momento em que meu chão desapareceu, junto, a vida havia se apagado dos meus olhos. Caminhei por um longo período no vale das sombras, enfrentei o frio e a solidão, conversei com a morte duas vezes a procura de respostas, que descobri mais tarde, são tão misteriosas quanto a vida.

A negação fazia parte do meu cotidiano, era a mentira mais fácil de acreditar, porém, a mais difícil de viver. Enquanto permaneci encarcerada na prisão mais segura que existe, no meu próprio interior, sabia que estava protegida e também condenada a nunca mais ver um raio de sol ou um sorriso que me servissem de conforto. 

A fortaleza de um corpo masculino me mantinha isolada e distante, jamais era Eu, Gabriella, e sim, esse cara que me prendeu e tomou todas as decisões sem me permitir o direito à democracia, ao livre-arbítrio, à vida. Enquanto a vida passava, sentia meu coração e meus pensamentos cada vez mais próximos dele, até que nos tornamos uma só carne e uma só alma, sem mais distâncias.



Precisaria de muita força e coragem para nos unirmos. Superei barreiras intransponíveis, vales sombrios, montanhas que beijavam o céu. O caminho dessa união foi exaustivo, cheio de armadilhas, encontros e desencontros, ilusões. Quando imaginava estar perto a realidade mostrava-se distante e a dor é/foi temporária mas desistir seria me perder por toda a eternidade.

Me reencontrei com este presente maravilhoso que é a vida, e desde então, ela me devolveu as  asas da liberdade, os acordes tão felizes que embalam os dias e o amor que jamais havia sentido de verdade. E agora que nos tornamos uma só, jamais vou dizer adeus.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Flores


A transição, até aqui, tem sido uma flor que brota no local mais improvável, em meio ao cinza sombrio da selva de concreto, encanta por sua beleza e cor. Admiro essa imparcialidade ao meio que à cerca, floresce cheia de vida, alheia ao ambiente hostil. 

Adoro receber flores, não constantemente para evitar cair no comum, e minha preferência é por aquelas cultivadas em casa com amor e dedicação, que me faz cuidar como se fosse uma filha, acho as rosas de floricultura descartáveis assim como as segundas intenções por trás delas.


Há cerca de um mês, recebi minha primeira flor, fui presenteada com um Dente-de-Leão, amarelo como o sol, que deixo em cima da mesa onde posso desfrutar de sua agradável companhia. Recebi essas flores de alguém muito especial em minha vida, da flor mais importante do meu jardim! Todos os dias converso com ela, e vejo em cada pétala um pouco desta pessoa que enche meus dias com o colorido som de suas risadas espontâneas. 


Perdi a conta de quantas vezes colhi flores ao longo dos canteiros cheios de vida por onde andei, ora para eternizar um momento especial, ora para contemplar sua delicadeza e seus incontáveis perfumes, tão marcantes quanto a transição. 

Cada pessoa maravilhosa que conheço, acaba deixando uma semente no jardim da minha vida, futuramente tornam-se orquídeas, pois, não são comuns. Algumas vezes tive que conviver com ervas daninha, que precisei arrancar delicadamente para que mantivesse o colorido da minha vida, depois que elas se foram, tudo floresceu mais lindo, forte e colorido.
Quantas e quantas vezes destaquei pétalas, jogadas ao vento para buscar o meu amor, que Bem-te-quero!









Dedicado à orquídea mais rara do meu jardim.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O céu é o limite


Foi como, se depois de muito tempo, eu estivesse entrando na mesma sala esperando reencontrar as lembranças que desabafei para alguém conhecida, que já não pertencia mais aquele lugar. Deixei esse sentimento de familiaridade na sala de espera na companhia do silêncio e abri mais uma porta rumo ao meu interior.

Meu olhar tumultuado procurava algum ponto familiar para fixar-se, afinal já estive naquela sala muitas vezes antes. As primeiras palavras saíram num sussurro embargado, uma voz sufocada vinda da prisão do meu interior clamando por um pedido de liberdade. Do alto de uma falsa pose de segurança, revelei a pessoa indefesa e carente do meu antigo ser.

Aquele olhar penetrante e o sorriso cativante sentados na minha frente, no início, me deixou perturbada. Como um animal selvagem, tentei fugir com medo de revelar o segredo mais profundo do meu ser, meu ponto mais vulnerável naquele momento. Mas, precisava que ela me ajudasse a encontrar a chave da liberdade.

Chorei rios, me afoguei muitas vezes, me escondi outras tantas nos labirintos sombrios do meu interior, a conduzi por caminhos que sabia não chegariam onde deveria, me encolhi de medo dos meus fantasmas. Ela me viu definhar e me viu ressurgir das próprias cinzas, mais forte e segura, viu meu céu desabar algumas vezes e me incentivou a dissipar as nuvens escuras, para que os raios de sol brilhassem mais uma vez.

Gradativamente a segurança dela me ajudou a encontrar a porta de saída que havia se perdido em algum lugar do passado. Deixei muitas vezes de acreditar em mim e outras tantas, me sabotei. No fundo sabia que a coragem de enfrentar o mundo ainda não havia se apagado, ela me pegou pelas mãos para voarmos juntas, e acima das nuvens revelou que o céu é o limite


* dedicado a minha psicóloga, que tem me mostrado as portas que me levaram a felicidade. Sou muito grata a ti.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Amuleto


A primeira vez que tive a oportunidade de conversar pessoalmente com uma trans, me deixou mais motivada e ao mesmo tempo um tanto preocupada para iniciar a transição. Foi através de uma amiga do peito que consegui o contato dela, precisava ver com meus próprios olhos o resultado ainda em andamento.

Na época, um ano e meio atrás, nossas realidades eram muito diferentes e assim continuam. A vida noturna que ela levava, para mim, sequer é uma remota possibilidade. 


Foi uma conversa engrandecedora. Me perguntava, como, desta pessoa franzina, com uma aparência tão delicada, é possível vir tamanha segurança em relação à vida? E ela taxativa, comentou: num momento de dificuldade precisei de um amuleto, que carrega até hoje e que fez questão de me mostrar. 

Na despedida, após uma tarde inteira de conversa, desejei boa sorte àquela pessoa, mas não precisava dizer isso. 

Naturalmente descobri o meu amuleto, mas diferente da história ímpar daquela pessoa, não foi num momento de dificuldade e sim de extrema leveza. 

Embora ele dê poder somente à mim, percebo sua energia se espalhar, contagiando muitos ao meu redor, principalmente aqueles com quem convivi antes do meu renascimento.

Tentei procurá-la mais uma vez, no final do ano passado, em vão. Quem sabe um dia nos encontraremos novamente, e nesta oportunidade eu possa mostrar meu amuleto, meu sorriso felicidade, que ela ainda não sabe, me ajudou a encontrá-lo!

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Espelho Meu


Não reconhecia aquele rosto refletido no espelho: cabelo raspado, sobrancelha grossa e um falso sorriso para enganar. Era alguém estranha para mim, alguém com quem nunca me acostumei. E ela estava ali, me esperando todos os dias, copiando meus movimentos, até que um dia criei coragem e olhei bem no fundo daqueles olhos negros. 

Conseguia ver nitidamente que ainda havia alguns fragmentos de esperança e uma vontade enorme de viver. Me interessei de verdade por aquela pessoa condenada à clausura, era impossível não me envolver com tamanho sofrimento. Os traços de isolamento social eram intensos e deixaram marcas profundas, mas que sabia, com o tempo seriam curadas com muito carinho e compreensão.

Aos poucos fui conhecendo aquela pessoa, que para minha surpresa, se revelou extremamente forte, segura, determinada. Quando pela primeira vez consegui identificar um esboço, do que seria futuramente, um sorriso que jamais abandonaria aquele rosto tristemente feliz, me enchi de esperanças e aos poucos me encantei com seu jeito tímido, mas naturalmente confortável.

Algumas vezes ela sumia sem deixar qualquer sinal de existência, o que me deixava triste, outras vezes aparecia de repente, e gradativamente, sem que eu pudesse perceber, ela foi tomando conta de todos os meus sentimentos. Comecei a conhecer tão bem aquela pessoa, que nos momentos que sabia ser inevitável me afastar dela, sentia falta do seu cheiro, da maneira feminina e delicada de me olhar em silêncio e esboçar aquele sorriso timidamente cativante e sentia falta até mesmo da maneira misteriosa de ser.


Aprendi muitas coisas com ela, lições simples mas extremamente poderosas. Aprendi que a felicidade está acima de tudo, que ser segura é uma filosofia de vida, que o tempo passa para todos e é generoso com alguns e cruel com outros, que o amor vence qualquer barreira e o mais importante: a vida é muito curta para ser insignificante![1] 




Esta pessoa não me deixou saudades, pois quem partiu definitivamente da minha vida foi um reflexo, que eu jamais reconheci.





















[1] Benjamin Disraeli

sábado, 1 de dezembro de 2012

Tempos Modernos

É inquestionável a genialidade de Charles Chaplin no filme Tempos Modernos – e em muitos outros – de 1936, recomendo . Quando o assisti mais uma, das dezenas de vezes, me ocorreu o seguinte: aquele automatismo do personagem quando começa a trabalhar é exatamente o que sentia em relação a minha vida, uma espécie de piloto automático, executando tarefas porque precisam ser executadas, vivendo uma vida completamente infeliz porque “deveria” ser assim, etc.











É seguro e cômodo ter uma rotina, saber o que vai ter no café da manhã, entrar no carro ou ônibus pontualmente todos os dias, cumprimentar as mesmas pessoas da mesma forma, entrar no ambiente de trabalho e se deparar com a mesma imagem: sua mesa cheia de papéis, uma foto de alguém especial – se esse alguém existir, respirar fundo e sussurrar o mantra “mais um dia fazendo as mesmas coisas”, ajustar a altura da cadeira mais uma vez, e pronto, ligar o piloto automático, sair às 18h e ir pra casa mentir pra si mesmo: “fiz tanta coisa hoje!”. 


O que você realmente fez? Riu das mesmas piadas, despachou seu pensamento para uma ilha paradisíaca no pacífico, enquanto tomava um cafezinho com aquelas pessoas que você finge suportar e sonhou com a vida que ainda não tem coragem de viver, afirmando: é só um plano pro futuro.

Hoje resolvi desligar o piloto automático, escolhi viver. Viver intensamente cada segundo, olhar para o céu e reparar o tom do azul, ouvir a melodia da vida, sentir o perfuma da flor. Mais um dia diferente daqueles que foram ficando pra trás, desde janeiro de 2012. Conhecendo pessoas – maravilhosas – novas, lugares novos, me arrumando para sair, enfrentando pela primeira ou milésima vez uma multidão, desafiando meus demônios. Posso afirmar, estou muito feliz hoje, mais feliz do que jamais estive em toda minha história até aqui.

E amanhã tenho certeza, meu dia será muito diferente desse que acaba de ficar pra trás...