sábado, 4 de maio de 2013

Família - parte II

A medida que o tempo vai escorrendo e as mudanças físicas te transformam em uma pessoa completamente diferente daquela que os familiares estão acostumados a ver, a família insiste em continuar enxergando um menino onde, num passado remoto, realmente houve. Essa é uma tatuagem que você carregará, senão para sempre, mas por um longo período.


"Oi filhO…" e a repetição incontável do meu nome civil no decorrer do diálogo. É assim toda vez que o telefone toca e no identificador aparece a palavra mãe. Longas conversas que acabam por resumir um fato que me deixa incomodada: a imagem que ela tem de mim ainda é uma imagem masculina, apesar de Eu já ter passado, faz algum tempo, dessas características para as femininas, é o tempo que ela precisa - coitada - para se acostumar com a minha nova imagem.

Trata-se de uma situação completamente diferente daquela que nos acostumamos a ver no cotidiano das famílias. Um menino que nasce, rejeita a identidade de gênero biológica, reconhece, assume e busca se libertar da prisão do transtorno de identidade. O que vejo refletido no espelho é muito diferente do que qualquer membro da família vê e essa transição acaba por confundir de vez o tratamento dispensado à você. Há momentos em que te tratam como menino - a maioria deles, e outros em que te tratam como menina. Apesar dos pedidos e lembretes diários, o gênero dos verbos conjugados quando se referem a minha pessoa está sempre no masculino e meu instinto de professora de português procura corrigir o gênero da frase, pronto. Mas não é assim tão simples.

E mesmo como boa anfitriã, no primeiro beijinho ou aperto de mão de qualquer membro da família ou qualquer desconhecido, deixo claro para me tratarem no feminino e repito como um papagaio meu nome social: É Gabriella. Um pequeno guia de boa convivência. Imagino a confusão na cabeça de todos eles: como é que até ontem eu conhecia um homem e hoje ele, na verdade, é ela? Pois é, confuso de entender, dúvida perfeitamente aceitável. Vejo o constrangimento e aquela vergonha infantil em falar comigo, nos olhos de cada um deles que eventualmente encontro por esta cidade - Blumenau.

Recentemente passei uma semana na casa do meu primo, me recuperando da cirurgia. Fazia tempo não o via. Ele já sabia da transição há algum tempo e assim que cheguei, pra minha frustração, foi nome civil pra cá e pra lá. Nenhuma pergunta invasiva ou comentário descabido. Um breve esclarecimento sobre a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. De qualquer forma fico feliz por ter me tratado como sempre, dispensando a atenção necessária e me deixando à vontade.


Com o avanço da transição o convívio foi ficando gradativamente mais difícil com algumas pessoas - já era mais que esperado, aquelas que não aceitam sob hipótese nenhuma. Por sorte, tenho uma família bem-resolvida, pelo menos a maior parte dela. E essa porção apoia (in)condicionalmente a minha decisão e o meu projeto Felicidade Plena. Só tenho uma pequena queixa: continuam me tratando como menino, repetidamente. Essa é a verdade visceral, mas não é a realidade. A verdade é universal, e a realidade é pessoal. 

Jamais tivemos muito contato com os parentes de 2o grau em diante e isso continua atualmente, ou seja, ninguém procura ninguém. A vantagem é que não precisei me esconder ou fugir para o interior de algum estado nos confins desse país continental - e não o faria,  pra passar pela transição. Apesar da dificuldade que imagino todos eles passem por não saber ao certo como me tratar, mesmo com todos os pedidos e esclarecimentos, ainda assim, fico feliz, por pelo menos ter uma família que não me abandonou.

Te tratarem como um menino poderá ser a tatuagem que você carregará pelo resto dos dias, não importa quão feminina você estiver, é assim que eles te vêem, e, a não ser por um golpe de sorte do destino, é assim que te tratarão para todo o sempre. Tomara que não.

Um comentário:

  1. bom, familia cada uma tem a sua e nao da muito pra opinar. mas a minha experiencia posso dividir.

    os que aceitaram e me tratam/trataram corretamente permanecem na minha vida. quem nao respeitou meu genero foi sumariamente excluido, independente dos laços de sangue. nao me arrependo, nao sao importantes pra mim.

    vc vai ver que quanto mais se avança na transicao, mais insuportavel fica quando te tratam da forma errada.

    boa sorte
    cristal

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