terça-feira, 2 de abril de 2013

Família - parte I

Mesmo nas famílias menos religiosas o preconceito existirá em maior ou menor grau, não se iluda com a possibilidade da aceitação instantânea do processo de transição, pessoas extremamente evoluídas e compreensíveis estão escassas. Cada um tem o seu tempo: semanas, meses, anos ou o resto dos dias da vida.


A convivência diária acaba por nos mostrar a previsibilidade das reações que cada membro da família terá em relação a qualquer assunto. Se for um assunto light a reação é previsível, se for um assunto pesado a reação também é previsível. Assim que me sentei à mesa para comunicar o início da transição, já imaginava qual seria a reação de todos eles, quais precisariam de mais tempo e quais precisariam de menos tempo para digerir a informação. Jamais esperei receber um tapinha nas costas com um comentário do tipo: essa é minha nova filha ou isso não muda nada.

Nada ficou no lugar. Não foi Eu quem mudou, mas a forma com que os outros passariam a me ver, e para sempre. O mais difícil não foi falar, o discurso já estava pronto e cheio de recursos visuais para ilustrar com clareza o que aconteceria daquele momento em diante. Acalmem-se, não é uma doença terminal ou incapacitante. Eu não morreria - pra mim, apenas deixaria de ser, fisicamente, a mesma pessoa que eles viram crescer e que conviveram por muito tempo. Tempo o suficiente para saber que não haveria uma segunda opção, um plano B. Continuaria a detestar futebol, pesca, perder as manhãs de domingo na frente da tv, mas continuaria a adorar cozinha, passeios na praia e boas risadas, só que a partir de agora, temporariamente andrógina.

Em menos de 10 minutos tudo parecia estar esclarecido. E Eu, que sempre detestei falar em público, dessa vez queria poder falar por mais tempo. O diálogo chegou ao fim no Todos entenderam? Alguém tem alguma pergunta? E ninguém levantou a mão. Olhares perdidos no horizonte, um silêncio constrangedor se instalou por alguns infinitos segundos, choro copiosamente infantil e orações para me "livrar de todo o mal". Pronto, agora era esperar e, aos poucos, ir colhendo as verdades e as mentiras.

Nos meses seguintes, todos pareciam ter, da noite pro dia, se tornados mestres em ignorar os fatos, fingir que não havia nada acontecendo, que tudo estava normal, desde que não se pronunciassem as palavras hormônio, seios, dores, TPM e outras. A transição tornou-se assunto proibido naquela casa. Todos viam as mudanças, mas ninguém tocava no assunto. Ninguém queria ser o traidor. A primeira vez que o assunto ressurgiu, estava com 9 meses de HRT, inúmeras mudanças físicas visíveis e foram apenas duas ou três frases, nada além de Você tem certeza? e As vezes a gente pede com fé e não é atendido.

Ainda hoje, 2 anos após essa conversa que mudou drasticamente nossas vidas - a minha pra melhor, há quem ainda não conseguiu digerir a transição. Previsível. Longe de ser uma imposição, uma cobrança, uma frustração, ansiedade, entendo perfeitamente que cada um tem o seu tempo. Me sinto privilegiada por ter essa família perfeita dentro de sua imperfeição. Não é nenhuma família de novela das 8, mas renderia uma boa história para contar.

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