quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Autopreservação


O simples fato de sair para um compromisso, qualquer que fosse: uma consulta médica, conversa descontraída com os amigos, supermercado, me fazia tremer da cabeça aos pés, um abalo classificado como de grau 8,0 na escala Richter, as ondas gigantes de adrenalina tomavam todas as veias e arrastava vertiginosamente tudo que encontrava pelo corpo, era uma sensação de medo que se seguia pelo prazer da endorfina transbordando por onde houvesse vazão. Uma mistura alucinante, viciante e dependendo do local, perigosa.

O instinto natural de autopreservação, ainda me faz sentir o frio na barriga, afinal, preciso e quero conservar minha própria existência e integridade física, psicológica e moral. As mãos continuam tremendo, em menor intensidade, mas, os calafrios que percorriam a espinha dorsal só de pensar em abrir a porta, pararam com o avanço prematuro do tempo.

Equivocadamente, acreditava que a solução seria trocar o dia pela noite, diminuir a exposição, me isolar, talvez viver enclausurada enquanto avanço ansiosamente para o fim da transição, não me parece um motivo justo para que isso aconteça. Logo desisti dessa ideia, afinal, como todo ser vivo, nasci para ser livre. O tempo escorre da mesma forma, independente de fazer ou deixar de fazer algo, escolho aproveitá-lo ao máximo.

Me expor hoje, ficou natural, não me causa mais tanto medo, pelo contrário, me sinto extremamente segura, uma segurança instável, uma barril de pólvora que a qualquer momento pode explodir. Rezo todos os dias para que Buda ilumine meus passos e jamais permita que o próximo passo seja aquele que me sujeitará ao preconceito em sua forma mais sub-humana, o que até hoje não me aconteceu.

Por não ter ocorrido absolutamente nada comigo até este momento da transição, tenho a sensação que daqui para a frente, cada vez mais feminina, a vida seguirá seu rumo com o mínimo de percalços, de qualquer forma, não deixo de me preparar psicologicamente para enfrentar as situações as quais estamos sujeitas no segundo seguinte, no próximo passo, por conta do extremismo pseudo-moralista.

Não me privo de enfrentar meus medos, mas tenho a necessidade de saber onde firmar meus pés antes de dar o próximo passo, para que não seja o último. O medo faz parte da vida da gente. Algumas pessoas não sabem como enfrentá-lo, outras - acho que estou entre elas - aprendem a conviver com ele e o encaram não como uma coisa negativa, mas como um sentimento de autopreservação. [1]

Preservo minha unidade e singularidade e assim vou vivendo.

[1] Ayrton Senna


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Um estilo: o meu


Gosto de cores discretas e de peças idem, que deixam evidente minha personalidade também discreta. Não me prendo a tendências, alias, procuro nunca seguí-las por serem passageiras, mas nem sempre é possível. Tenho queda por vestidos, meus preferidos são os de saia volumosa, tubinho, balonê e os de estilo vintage, para equilibrar com os ombros ainda largos, acidentalmente adicionei a isso uma calça jeans. Alguns elogios depois...Vestido e calça jeans, trabalho, passeio, momentos descontraídos em casa.

 Acho o vestido a peça mais feminina do mundo, sempre os idolatrei, talvez por não tê-los usado na infância, tampouco, na primeira adolescência. Os poucos que minha irmã possuía não cabiam em mim por conta dos ombros. Não chega a ser uma frustração. As primeiras peças do meu guarda-roupa foram vestidos discretos: pretos, na altura do joelho, sem qualquer detalhe. Aos poucos foram aumentando as cores e estampas e diminuindo o tamanho.

Antes de encontrar definitivamente meu estilo sofri como toda mulher, usei inúmeras peças que acabei doando por não combinar comigo, comprei por impulso, a cor da moda, o estilo da moda, o corpo da moda. Não me apegava ao fato de ainda estar com um corpo significativamente musculoso (sim, fiz musculação por cerca de um ano e meio), e isso só deixava mais evidente o que eu não era, até que estudando em sites e revistas de moda notei que seria possível ser sexy sem mostrar muito o corpo, mais uma revolução no modo de vestir.

O espelho e a máquina fotográfica passaram a ser meus personal stylists. Frequentemente desfilo para eles e como em todo desfile, claro, me pedem poses, naturais e femininas, mas por enquanto, nada de cabelos esvoaçantes, os deixo para as propagandas de shampoo. 

Camiseta e calça jeans não combinam comigo, pelo menos não hoje. Olhar clínico, paciência em vasculhar lojas, regras na cabeça para adequar as roupas ao formato do corpo, saber o que me cai bem e discrição, sem abrir mão de ser feminina e de repente mais um vestido para o meu guarda-roupas, um tomara-que-caia de fundo branco e detalhes de flores rosas estampadas, perfeito para o verão.

O salto tem seu valor na vida de uma mulher, saber andar neles com delicadeza, segurança e feminilidade é uma ciência. Tênis? Nem pensar! Exclusivamente para minhas corridas. Nos pés geralmente conforto, molecas com flores, strass, laços, discretos. A roupa funciona como a lei da atração, se usar peças vulgares atrairá pessoas vulgares, se usa roupas descoladas atrairá pessoas descoladas, se elegantes idem, por isso, ao meu lado quero pessoas felizes, descoladas, inteligentes e respeitadoras.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Guerreira de aura boa

Ela tem algumas das características que admiro em uma pessoa, é corajosa, destemida, inteligente, autêntica, batalhadora, e tem a feminilidade natural intrínseca, tão evidente quanto a da maioria das mulheres. Ouvi com atenção a história de vida dela, dramática, perturbadora, visceral e completamente diferente daquelas que li e ouvi, com detalhes que fariam qualquer uma enlouquecer, qualquer uma, menos ela!

Enfrentou as mais ferozes situações, as quais tenho pavor só de pensar. Nem a voz gutural assustadora, vinda das profundezas da sociedade fez, primeiro ela, depois Eu, sequer, pensar em abrir mão de nossa felicidade. Mãos que já se encontraram e que cruzarão oceanos, para do outro lado do mundo, enfrentar a última batalha de nossas velhas vidas.

A vida é um campo de guerra, ambiente hostil, para nós, ainda mais perigoso que o normal. Se você conhece a ti mesmo e ao teu inimigo não temerás o resultado de cem batalhas[1]. Ela foi em frente com sabedoria e enfrentou destemida e de forma heróica os combates homéricos resultantes de suas escolhas. Venceu com a segurança surpreendente que sua presença transmite.

Ainda não faz um ano, nos encontramos pela primeira vez, e também a última que me via in natura. Vivemos pouquíssimas experiências juntas, e quando Eu estava com medo de enfrentar o mundo, na primeira vez que saímos, ela segurou minha mão, me passou uma segurança enorme, experiência de quem já viveu infinitas vezes a mesma situação em que me encontrava. Me fascina a coragem que ela tem, daquela silhueta frágil de repente surge uma fortaleza, capaz de deter o mais poderoso dos inimigos. Nas grandes batalhas da vida, o primeiro passo para a vitória é o desejo de vencer[2].

Ouvi de sua boca uma frase que me marcou e como uma cicatriz jamais se apagou do meu corpo, isso (usar roupas femininas e sair da zona de conforto para olhar o mundo de frente) vai ficando cada vez mais frequente, e então, você nem se dará conta de que ficou tão natural, que vai acabar não se lembrando mais como era se vestir de menino. Sabedoria de quem viveu essa experiência e conquistou mais uma trincheira para vencer a contraditória força da natureza humana.

Queremos nos soltar, viver nossas rebeldias, rir do destino e redesenhar nossas histórias[3]. Quando nossas histórias se encontraram, primeiro em um email, depois em um telefonema e por fim na presença de nossas personalidades opostas, não hesitei em comemorar, ganhei uma amiga, alguém que quero muito bem, uma menina doce e sonhadora, guerreira de aura boa.

* para minha amiga Dani Sena
[1] Sun Tzu
[2] Mahatma Gandhi
[3] Alonso Piccoli

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Peregrinação



Na época da montagem da equipe multidisciplinar para me acompanhar no processo de transição, a maior pedra no caminho foi encontrar a principal especialidade, a endócrino que faria o regime hormonal. A procura se estendeu por sete meses até aquele 22 de dezembro de 2011, quando uma porta se abriu bem na frente do meu nariz. Ainda parecia não ser verdade que a partir daquele momento teria início mais uma fase importante e, sem sombra de dúvida, uma das mais felizes da minha vida, até aqui.

Os primeiros passos dessa jornada espetacular foram compostos por dezenas de listas de médicos em muitas cidades, Blumenau, Joinville, Florianópolis, Curitiba, Porto Alegre, São Paulo e finalmente Balneário Camboriú. Muitos telefones tocaram desesperados em busca de socorro, alguns esperançosos sins e muitos depressivos nãos. As primeiras consultas, sempre tinham um gostinho de esperança, de que, não haveria mais nenhum obstáculo, que, inúmeras vezes me fizeram sentar e esperar a tormenta passar. Minhas pernas já cansadas começavam a pensar em desistir.

O caminhar não era uma prova de fé, mas, para encontrar uma pessoa com alguma experiência para dar início à hormonização, então, marcava a consulta, em busca da minha verdade. Começava a explicar qual era minha expectativa em relação a HRT* e o que estava procurando, ansiosamente. A resposta nunca era a que queria ouvir, mas, a que precisava naquele momento para encontrar forças e chegar ao final dessa impiedosa peregrinação: "faço só depois da cirurgia…", "faço só após o segundo ano…", "faço mas …", sempre o mesmo mas que acabou por cauterizar minha esperança durante algum tempo, tempo o suficiente para recuperar as forças e seguir adiante.

Muitos meses e consultas inúteis depois, ao final de outubro, comecei a ligar para todos os endócrinos em Balneário, havia feito o mesmo nas cidades de Blumenau, Joinville, Floripa e algumas outras. A secretária me atendeu, primeira da lista, mais uma vez pediu meu telefone para retornar a ligação, meu sexto sentido sempre me dizia que não seria dessa vez que meu telefone tocaria uma música empolgante do Queen ou do Paul, a segunda da lista pediu meu telefone para retornar e mais uma vez somada as outras cento e tantas, minha esperança se perdeu na memória de um número qualquer, dois minutos depois, digitando o próximo número da lista, para minha enorme surpresa, a voz de Freddie Mercury ecoou por toda a sala acompanhada pelo coral solitário da minha voz (...) I'm burning through the sky Yeah!, finalmente a resposta que tanto esperava, explodi.

Temperaturas escaldantes capazes de derreter até o pensamento, tempestades de areia, nevascas mortais, o fim do mundo, nada me atrasaria para aquela consulta separada por 45 dias entre um telefonema e a porta a ser aberta para uma nova vida. Assim que nos vimos, senti uma empatia enorme e a consulta fluiu naturalmente, ela sabia do mal que me afligia e que me levou a atravessar aquela porta. Exames, laudo psiquiátrico e quinze dias depois, finalmente, sai do consultório com a receita da minha tão sonhada vida real, à venda em qualquer farmácia em forma de pílulas.

O fim da peregrinação havia deixado para trás o peso do mundo, o futuro não parecia mais tão distante, como um estrada num campo de girassóis. Esse caminho me provou que não são as coisas materiais que me trazem a felicidade, mas as dificuldades que superei, os medos que enfrentei, as pessoas maravilhosas que encontrei com as quais compartilhei uma mínima parte dessa jornada e o sentimento de ter alcançado a vitória, mesmo que o resultado dessa caminhada representasse sacrificar a própria vida, perder as pessoas que carreguei no coração. 

Toda grande caminhada começa com um simples passo.[1]

*Hormone Replacement Therapy
[1] Buda.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Ciganos


Era o dia 19, de algum mês que não me lembro bem, lá em 2001. Já não era tão quente em Blumenau, o vento fazia as árvores dançar timidamente em um vai e vem discreto. Época de ciganos na cidade perambulando pelo centro, trazidos por alguma corrente de ar, soprando do sul para o norte ou do oeste para o leste.

Antes que pudesse cruzar a frente daquela senhora franzina, castigada pela vida, ela tomou minha mão e em poucos segundos olhou com consternação nos meus olhos descrentes. O que ela me disse? Bom, Eu não tenho sorte no amor! Naquele momento ela estava parcialmente certa. Eu estava sozinha curtindo minha solidão, que nunca vi como um problema.

Acredito sim em destino, mas não acredito em previsões furadas, videntes formados pelo Instituto Universal, horóscopos que se encaixam na vida de qualquer pessoa que acredita que o futuro pode estar publicado ao lado de um símbolo do zodíaco à venda por R$ 5,00 em qualquer esquina ou disponível gratuitamente na internet, nem em biscoito da sorte. Sou dona do meu destino, percorro meus caminhos sabendo onde quero chegar.

Dias depois nem me lembrava mais da fisionomia daquela cigana, mas as palavras e o ouro garimpado em sua gengiva ainda estavam reluzindo em meus pensamentos. Aos poucos se ofuscaram. Dois anos adiante, em 2003, meu primeiro relacionamento. Me apaixonei, vivemos bons momentos, e a primeira evidência daquelas palavras surgiram no oitavo mês do relacionamento, força do destino, mera coincidência. Relacionamentos dão errado e que bom que terminou, não era para dar certo, obra do destino, soprado ao vento em 2001.

Passados oito meses, recuperada do estrago causado pelo primeiro, entrei no segundo, e, por enquanto, último relacionamento, dessa vez estava mais madura. Muitos momentos maravilhosos, crises passageiras, passeios incríveis, uma vontade imensa de estar em sua presença o tempo todo, eram mais momentos de sorriso e felicidade do que conflitos. Nos casamos no civil após quatro anos de convivência e certezas, a vida conjugal começou para valer. Foi uma experiência ótima de 2004 até 2009, quando a vida começou a tomar um rumo diferente do que Eu esperava. 

Acreditei, como toda mulher apaixonada, que passaria a vida inteira nesse relacionamento. No início da crise as palavras da cigana renasceram e por mais que eu me esforçasse não conseguia me livrar da imagem daquela boca dourada se mexendo. Lutei, abri mão de muita coisa, me anulei mas não bastou, também não era para ser e em 2012 arrumei minhas coisas e deixei para trás sete anos de relacionamento e uma semente que brotou desse amor.

Estou muito feliz sozinha, nesse momento da minha vida. A cigana nunca mais vi e continuo descrente desse tipo de previsão, quem sabe o próximo relacionamento me mostre que ela estava completamente errada.