domingo, 14 de dezembro de 2014

(Não) Temos vagas - parte II - Mercado de trabalho

Não basta ter uma boa formação, diversos cursos de aperfeiçoamento e atualização, fluência em um segundo e terceiro idiomas. Você é trans e isso desabona todo seu potencial. 


Não basta ter uma boa formação, diversos cursos de aperfeiçoamento, fluência em um segundo ou terceiro idiomas. Você é trans e isso desabona todo seu potencial.

Uma das minhas preocupações, talvez a maior delas, era até quando conseguiria me manter empregada na iniciativa privada a partir do início da transição. Esse período foi de exatamente um ano. Aquele ano (2012) foi fantástico, sai da minha zona de conforto, me deu muito medo no início, afinal o novo sempre me desperta esse sentimento, ainda.

Durante um ano me iludi achando que estava tudo bem, que não seria demitida, e que passaria sem preocupações profissionais pela fase mais conturbada da minha vida. Estar empregada me dava uma segurança momentânea, pois, poderia manter o tratamento hormonal, as consultas médicas, psicologa, fono, esteticista dentre outras coisas, mas de repente o chão parece ter sumido debaixo dos meus pés. Foi difícil aceitar a demissão sem motivo e quando aconteceu, só me  passava pela cabeça "pronto, acabaram minhas chances na iniciativa privada, e agora?".

Tenho um bom currículo, ouço isso com frequência. Graduação, pós-graduação, inglês fluente, dezenas de cursos de atualização e aperfeiçoamento, sete anos de experiência em uma auditoria global que é uma vitrine profissional, alguns poucos e suficientes contatos. Mas sou trans.

Dentre as opções limitadas que se vislumbravam em meu horizonte haveria duas possibilidades: negócio próprio ou concurso público. A primeira opção era pouco viável, pelo menos em Blumenau e eu não conseguiria me ver passando por uma crise econômica, a segunda opção, apesar de eu achar impossível poderia ser uma saída. Gosto do impossível porque lá a concorrência é menor [1].

Foram dezenas de entrevistas na inciativa privada, algumas delas super produtivas que me faziam alimentar uma falsa esperança de que eu conseguiria me recolocar na minha área de formação. "Vamos marcar uma entrevista pra conversarmos pessoalmente, vou te mandar um questionário bem simples só pra coletar alguns dados, vamos entrar em contato..." Por que o preconceito seria diferente comigo? E, de fato, não foi! Eu não sou uma privilegiada.

Agrava-se o fato de morar em uma cidade extremamente retrógrada, imagino, como a maioria daquelas em que sobrevivem mulheres trans. Oportunidade há, para os ditos normais, para quem segue as regras do jogo, para os que não questionam, marionetes, fantasmas da própria vida.

Passados dois anos consegui meu lugar ao sol. Meu telefone ainda toca vez ou outra, um headhunter querendo me entrevistar. Não estou em posição de superioridade, mas com toda certeza não preciso mais me submeter a esse preconceito excludente e agora posso recusar uma proposta, afinal, nunca há vagas para trans!



[1] Walt Disney

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Primeira impressão

A primeira vez que me veem, os olhos parecem imãs, e, fixam em minha fisionomia como se fosse meu pólo magnetizado, analisando cada detalhe do meu físico, trejeitos, roupas etc. Uma análise minuciosa que talvez só um supercomputador consiga fazer em tempo recorde.

A primeira quinzena nessa nova vivência fulltime foi um grande desafio pra mim, e após dois anos ainda é. Chego na biblioteca que costumava frequentar havia algum tempo (como homenzinho) e subo - nem tão tranquilamente assim - as escadas até encontrar o lugar mais confortável para me acomodar. Num primeiro momento olhares furtivos e curiosos, cochichos, nada que me abale, sento, abro os livros e sigo minha rotina de estudos.

Quando subo ou desço as escadas com uma pilha de livros nos braços, o que chama a atenção, possivelmente, é o fato de uma trans estar estudando, como se isso fosse algo inimaginável nessa galaxia, parece que é. Unicórnios não existem, trans que estudam, a sociedade imagina que também não. 

Passa pela minha cabeça ser inevitável o pensamento coletivo "Essa coisa não deveria estar num salão de beleza ou numa esquina qualquer negociando o corpo?" NÃO. Eu não sou um esteriótipo, estou apenas buscando o conhecimento e a educação que lhes faltam e o meu melhor futuro pessoal e profissional longe desse sistema de castas velado. Sim, vos desafio a tentar me impedir de expandir meu potencial, meu horizonte.

Os dias se seguem e de repente o diferente passa a integrar o ambiente e já não é mais tão diferente assim. Como costumo dizer, passei a fazer parte da paisagem. Alguns curiosos tentam se aproximar, outros nem ousam, talvez eu não permitisse mesmo, melhor assim. Com pouco contato, por precaução, pela minha segurança física e emocional e porque nunca fui muito de contato social.

Colhi poucas mas ótimas amizades nessa biblioteca durante pouco mais de um ano, e mais do que isso, colhi respeito e admiração de pessoas com quem nunca troquei uma palavra sequer. O diferente ficou comum. No fim das contas, essa história renderia um bom livro.