quarta-feira, 29 de maio de 2013

Invisibilidade

Às vezes parece que me perco de mim, é o que defino como minha invisibilidade, pois preciso olhar em volta para saber onde estou, o que estou fazendo ali e quem sou Eu, visível aos olhos dos outros, invisível aos meus.

Às vezes parece que me perco dentro de mim, é o que defino como minha invisibilidade, pois não me reconheço. São tantas demandas, que a máquina parece estar entrando em curto-circuito e então é preciso um tempo de recuperação para tudo voltar à normalidade.

Tenho meus dias em que gostaria de paz absoluta, sem que ninguém perguntasse por mim, sem que o telefone tocasse, sem que me notassem na rua, ficar invisível por um período curto de tempo só pra estar em contato comigo mesma e me descobrir um pouco mais a cada dia. O que gosto, o que abomino, definir minhas opiniões sobre tudo que julgo realmente importante e que possa influenciar minha vida. Fazer tudo isso sem levar em consideração a mídia alienante, um exercício de autodescoberta pura.

Os meus momentos de introspecção são assim, tenho vontade de sumir do mapa e aparecer dias depois como se nada tivesse acontecido, ficar isolada no alto de uma montanha no Tibete até que o equilíbrio volte a reinar. Essa introspecção me acompanha desde pequenina, ficar calada e pensativa, tentando não me agoniar com o futuro, para que se transforme em ansiedade, e o melhor é viver o agora. Isso sempre acontece quando tomo uma decisão e a exerço, uma decisão que vai mudar minha vida, mais uma vez, e que acaba por me gerar essa condição charlatanesca de - tentar - adivinhar o futuro.

Depois de dois ou três dias me recupero, e tudo retoma sua normalidade, a visibilidade volta. Quebro meu voto de silêncio e volto a ouvir minha própria voz, cantar minhas músicas preferidas, não me importo se o telefone toca, passo a querer mais uma vez ser notada e desejada - embora seja difícil passar desapercebida com 1,81cm, retomo meus textos. A vida volta ao normal e de repente surge um convite pra um bate papo com as amigas, o que é sempre bom.

Ser vista e lembrada é evidência mais que suficiente de vivacidade, de visibilidade, afinal quem não é visto, não é lembrado. E saio por esse mundo afora para saciar minhas necessidades humanas básicas, não sou de extravagâncias. Sendo vista ou não, o que me importa de verdade é minha paz interior, que nesse momento mágico da vida retorna ao seu equilíbrio com tudo a minha volta.

Ah vida imperfeita, não quero ser invisível todos os dias, e convenhamos, quando nem o panfleteiro te entrega o papel é sinal de que alguma coisa está muito errada.

sábado, 18 de maio de 2013

FFS - impacto psicológico

É difícil encontrar qualquer tipo de comentário, depoimento, matéria sobre o impacto psicológico que a cirurgia de feminização facial causa em quem passou pelo procedimento. Essa lacuna pode esconder armadilhas que jamais imaginaria passar - novamente.

A feminização facial foi algo com que sempre sonhei, e no último mês esse sonho, tão distante, tornou-se realidade. Não pude e ainda não consigo conter as lágrimas por ter dado um passo tão importante na transição, lágrimas de felicidade.

Um mês ficou pra trás desde a realização da cirurgia de feminização facial, o rosto continua inchado e o roxo, principalmente na região dos olhos, não quer dizer adeus, essa é parte do impacto que minha ansiedade causa em querer ver o resultado final o quanto antes. Paciência é a palavra chave, e se não a tiver, aprenderá de forma dolorosa que é preciso tempo para o corpo se recuperar e revelar o novo rosto esculpido por baixo de todo esse inchaço e roxidão.

A minha expectativa em relação ao que gostaria de ver refletido no espelho acaba causando uma confusão de sentimentos. Há momentos em que estou feliz, analisando milimetricamente as nuances reveladas pela cirurgia, há momentos em que estou triste, simplesmente não consigo ver as mudanças no rosto que o deixaram mais feminino. É, não voltei de um cruzeiro de férias, retornei de um procedimento invasivo e que requer tempo e muita paciência para me recuperar. 

Nessa euforia e nesse turbilhão de sentimentos, os sintomas da depressão parecem querer voltar a todo instante: tristeza profunda, falta de apetite, desinteresse pelas atividades antes prazerosas - dentre elas escrever - e o meu velho companheiro, o isolamento da vida social. É apenas uma fase de recuperação, inevitavelmente aconteceria, e dentro de dois ou três meses ficará no passado. E essa confusão de sentimentos me acompanhará até a aprovação no novo teste da vida real, ou seja, até que o olhar alheio me reconheça como essa nova mulher com quem durmo e acordo todos os dias da minha vida*.

Algumas vezes me vejo com os traços cada vez mais femininos, e isso, claro, me deixa com a cabeça nas nuvens e os pés no chão, outras vezes, porém, penso em não olhar o reflexo, não gostando do que verei, pelo menos nos próximos dois meses. É o resultado de uma equação dinâmica cruel, que não se importa com o tempo de acompanhamento psicológico, tampouco com sua capacidade de lidar com as adversidades dessa vida: autoestima instável ou estável + olhar diferenciado sobre a imagem no espelho = dualidade da mente - gosto ou não gosto do que estou vendo, a verdade!

Foi importante me desapegar da imagem que estava acostumada a ver nos reflexos por onde andava e tive que aprender a reconhecer a nova imagem, a nova voz, essa renascida Eu - mais uma vez.

Você espera que a cirurgia mude completamente sua vida, o que não é 100% verdade, torna-a mais fácil em alguns aspectos, por exemplo, o trato das pessoas é diferente quando te veem como mulher e, por outro lado, é embaraçoso quando você tem que mostrar um documento. Detalhes que fazem parte da vida de toda/o guerreira/o trans. Portanto, esteja preparada/o para renascer mais uma vez.

*PS.: A opinião de alguém não deve se tornar sua realidade. Me refiro ao fato de que na cidade onde moro - Blumenau/SC, a ação de me apontarem na rua incomoda demais, a ponto de me devolver os sintomas da depressão. Essa aprovação nesse novo Real Life Test me deixará sem dúvida muito mais feliz e minha qualidade de vida melhorará significativamente.

domingo, 12 de maio de 2013

Guarda-roupas

Tirar do guarda-roupas as peças que não são mais usadas e doá-las tinha um gostinho de ação beneficente e uma sensação de leveza na consciência no passado, ontem, essa mesma atitude teve um gosto de liberdade nunca sentida por mim antes, dando início a uma nova fase da minha vida, finalmente fulltime.

Algum tempo atrás alguém me falou que Eu tinha sorte em poder escolher como me vestir, se com roupas de menino ou de menina. Claro, mal sabia ela que Eu não queria escolher, queria sim, desde sempre, era me vestir confortavelmente com roupas de menina e finalmente chegou esse maravilhoso dia. Abri a porta do guarda-roupas e o lado direito onde ficavam as remanescentes peças masculinas foi esvaziada, sem pressa em deixar o passado pra trás.

Camisa por camisa, calça por calça, tudo dobrado bonitinho e acomodados em pequenos montes com destino certo: doação. Não se trata de uma doação qualquer, são as peças que passei, pelo menos, os últimos cinco anos da minha vida usando. Elas não tem um valor sentimental e não duvido que terão caimento melhor em outro corpo do que em minhas já femininas curvas que não vou mais esconder.

Me deu um alívio enorme ver que só restaram os cabides que a partir de agora irão me fazer, todos os dias, perder um bom tempo para escolher qual dos meus vestidos vou usar, principalmente os novos que acabaram de chegar. A primeira vista, depois de limpar a ala masculina há uma sensação estranha em saber que não estarão mais lá e ao mesmo tempo um sentimento de extrema felicidade por não mais estarem ali acumulando pó, espaço e hoje um leve sofrimento.
Essa doação tem um gosto de arco-íris, mágico, especial e colorido. É uma porta que se fecha para um mundo conhecido e outra que se abrirá para um mundo completamente novo e cheio de expectativas e inevitáveis frustrações.

Quando deixei a sacola na caixa de doações, não foram só as roupas que ficaram para trás, ficou também uma vida, um passado e o início de um novo futuro. Estão indo embora as roupas, algumas lembranças e meu antigo Eu. Adeus.

sábado, 4 de maio de 2013

Família - parte II

A medida que o tempo vai escorrendo e as mudanças físicas te transformam em uma pessoa completamente diferente daquela que os familiares estão acostumados a ver, a família insiste em continuar enxergando um menino onde, num passado remoto, realmente houve. Essa é uma tatuagem que você carregará, senão para sempre, mas por um longo período.


"Oi filhO…" e a repetição incontável do meu nome civil no decorrer do diálogo. É assim toda vez que o telefone toca e no identificador aparece a palavra mãe. Longas conversas que acabam por resumir um fato que me deixa incomodada: a imagem que ela tem de mim ainda é uma imagem masculina, apesar de Eu já ter passado, faz algum tempo, dessas características para as femininas, é o tempo que ela precisa - coitada - para se acostumar com a minha nova imagem.

Trata-se de uma situação completamente diferente daquela que nos acostumamos a ver no cotidiano das famílias. Um menino que nasce, rejeita a identidade de gênero biológica, reconhece, assume e busca se libertar da prisão do transtorno de identidade. O que vejo refletido no espelho é muito diferente do que qualquer membro da família vê e essa transição acaba por confundir de vez o tratamento dispensado à você. Há momentos em que te tratam como menino - a maioria deles, e outros em que te tratam como menina. Apesar dos pedidos e lembretes diários, o gênero dos verbos conjugados quando se referem a minha pessoa está sempre no masculino e meu instinto de professora de português procura corrigir o gênero da frase, pronto. Mas não é assim tão simples.

E mesmo como boa anfitriã, no primeiro beijinho ou aperto de mão de qualquer membro da família ou qualquer desconhecido, deixo claro para me tratarem no feminino e repito como um papagaio meu nome social: É Gabriella. Um pequeno guia de boa convivência. Imagino a confusão na cabeça de todos eles: como é que até ontem eu conhecia um homem e hoje ele, na verdade, é ela? Pois é, confuso de entender, dúvida perfeitamente aceitável. Vejo o constrangimento e aquela vergonha infantil em falar comigo, nos olhos de cada um deles que eventualmente encontro por esta cidade - Blumenau.

Recentemente passei uma semana na casa do meu primo, me recuperando da cirurgia. Fazia tempo não o via. Ele já sabia da transição há algum tempo e assim que cheguei, pra minha frustração, foi nome civil pra cá e pra lá. Nenhuma pergunta invasiva ou comentário descabido. Um breve esclarecimento sobre a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. De qualquer forma fico feliz por ter me tratado como sempre, dispensando a atenção necessária e me deixando à vontade.


Com o avanço da transição o convívio foi ficando gradativamente mais difícil com algumas pessoas - já era mais que esperado, aquelas que não aceitam sob hipótese nenhuma. Por sorte, tenho uma família bem-resolvida, pelo menos a maior parte dela. E essa porção apoia (in)condicionalmente a minha decisão e o meu projeto Felicidade Plena. Só tenho uma pequena queixa: continuam me tratando como menino, repetidamente. Essa é a verdade visceral, mas não é a realidade. A verdade é universal, e a realidade é pessoal. 

Jamais tivemos muito contato com os parentes de 2o grau em diante e isso continua atualmente, ou seja, ninguém procura ninguém. A vantagem é que não precisei me esconder ou fugir para o interior de algum estado nos confins desse país continental - e não o faria,  pra passar pela transição. Apesar da dificuldade que imagino todos eles passem por não saber ao certo como me tratar, mesmo com todos os pedidos e esclarecimentos, ainda assim, fico feliz, por pelo menos ter uma família que não me abandonou.

Te tratarem como um menino poderá ser a tatuagem que você carregará pelo resto dos dias, não importa quão feminina você estiver, é assim que eles te vêem, e, a não ser por um golpe de sorte do destino, é assim que te tratarão para todo o sempre. Tomara que não.