segunda-feira, 29 de abril de 2013

Cirurgias, corpo e recuperação


Qualquer cirurgia por menor que seja é um procedimento invasivo e requer cuidados seguidos à risca para uma recuperação confortável.

Realizada a FFS e a mamoplastica de aumento a vida segue o mesmo rumo, ainda não sei se com maiores ou menores dificuldades. A única certeza até agora, nesta fase da recuperação é o aumento exponencial da minha felicidade por conseguir alcançar minha liberdade condicional.

São duas semanas completas da realização da feminização facial e mamoplastia de aumento. Os resultados ainda estão escondidos sob o inchaço do rosto e das mamas que revelar-se-ão com o passar do tempo. Seis meses é o tempo necessário para que todo o inchaço abandone os locais cirurgiados, até lá as expectativas para revelar meu novo rosto feminino dominarão meu senso.

Acreditava que as dores seriam maiores na região da face, me enganei redondamente, não senti absolutamente nada de dor no rosto, apenas o incômodo causado pelo inchaço. As próteses mamárias foram colocadas atrás do músculo peitoral, local que causa as piores dores porém o resultado é muito mais natural. Todo movimento feito com o tronco exige algum esforço, por menor que seja, da musculatura peitoral e qualquer estimulo causa um pouco de dor na região da prótese. A primeira semana foi a pior, pois não conseguia me deitar e quando tinha que levantar ou simplesmente arrumar a postura a dor era inevitável. 

No quinto dia após a realização da cirurgia abandonei os analgésicos, pois a dor passou a ser mais suportável sem a necessidade de me dopar para aguentá-la. Hoje, duas semanas após, consigo me movimentar tranquilamente sem dor, estou seguindo à risca as orientações médicas para evitar complicações e ter uma recuperação confortável. Os pontos da FFS foram retirados na sexta-feira (26/abr) e os pontos das mamas não causam desconforto e serão absorvidos naturalmente pelo corpo nos próximos dois meses.

A pior sensação no pós-cirurgico foi sentir a perda total do fôlego. Adoro correr e na semana anterior a cirurgia corri três dias intercalados um total de 45km. Uma semana após a cirurgia não consegui andar três quadras sem parar, me assustei mas logo me conformei de que é assim mesmo que o corpo reage após um procedimento invasivo que é uma cirurgia. Nada de esforço físico e nada de sol pelas próximas seis semanas, muito repouso e alimentação balanceada.

A limitação de movimentos dos braços é mais uma coisa que incomoda no pós-cirurgico da mamoplastia. Dá uma certa sensação de impotência não conseguir se vestir sozinha. Sou muito receosa com relação a dor e aos cuidados, e aos poucos você se adapta temporariamente e devagar pode ir começando a movimentar normalmente os braços com os devidos cuidados para não prejudicar o resultado da intervenção, nada de movimentos bruscos, erguer os braços além da linha do ombro está mais que proibido, dirigir então, nem pensar.

No final das contas correu tudo bem, a recuperação está sendo ótima, sem dores e com poucos incômodos físicos. Agora é esperar e realizar a última cirurgia, SRS no ano que vem e passar por tudo isso de novo. Se tudo isso vale a pena? Depende do quão importante é para si própria a tua felicidade, paz de espírito e a redução/eliminação do desconforto que o apetite desse dragão voraz do transtorno de identidade de gênero causa.

sábado, 13 de abril de 2013

Canteiro de obras

Endócrino, psiquiatra, psicóloga, dermatologista, fonoaudióloga, cirurgiões. Cada um responsável por uma parte do processo de construção e reforma de uma nova pessoa, que envolve, ainda, a reformulação de uma nova identidade. O canteiro de obras que é o processo de transição.

Toda reforma dá a impressão de que o seu fim jamais chegará. Você não vê a hora de tudo, finalmente, poder voltar ao seu lugar original. Chega de poeira, Chega de plásticos cobrindo tudo. Sim, existe um fim e sua distância depende diretamente da sua ansiedade. Com a transição não é diferente, é tudo um pouco provisório: a dor nas mamas, o formato delas como no início da puberdade feminina, a fisionomia antes da FFS, a voz, o formato do corpo etc.

Sua família vai comentar e dar opiniões, seus amigos - pelo menos os mais próximos - farão a mesma coisa e, você, que é o objeto de toda essa obra ouvirá, nem sempre com atenção, as sugestões que estas mesmas pessoas não tiveram coragem de colocar em prática em suas próprias vidas. Faz a sobrancelha bem fina, eu deixaria um traço masculino bem evidente quando fizesse a FFS, eu malharia pra ficar bem forte. Não, eles não fariam isso se estivessem na sua pele.

Essa obra é dolorosa, mas é extremamente gratificante olhar as fotos da evolução mensal, e ver quanta diferença pode ser notada em pouco tempo. A progressão na maquiagem, na forma de vestir, o comportamento que vai se moldando à sua personalidade. E você ganha o dia quando, mais uma vez, vai até uma consulta e o/a médico/a te elogia dizendo coisas tão simples, mas que fazem uma diferença enorme na autoestima. Nossa, como você está feminina. Não consigo mais associar aquela imagem da primeira consulta contigo. Definitivamente não são a mesma pessoa.

As coisas começam a ficar mais fáceis após um ano. A aparência fica mais pra feminina e cada vez mais os traços vão se refinando, os hormônios em conjunto com o laser fazem rapidamente - a partir de dez ou onze meses - a eliminação dos pêlos indesejáveis, o corpo assume curvas bem definidas, a massa muscular diminui significativamente, mesmo para quem treinou pesado musculação, essa é a parte de fora da obra, o que todos vêem.

Internamente também há muito trabalho árduo a ser feito. Aprender a lidar com as mudanças de humor que a testosterona pode causar, entender melhor os sentimentos e as novas reações que você só descobre quando passa por alguma situação em que são exigidas. Aos poucos, ir moldando essa nova identidade que nasce da necessidade de adequar corpo e mente.

Deixei minhas expectativas do lado de fora, eram muitas e sabia que se alguma mudança não estivesse milimetricamente assimétrica conforme minhas expectativas, a frustração acabaria com minha autoestima e até mesmo com o melhor dos profissionais. Chegou um momento em que o mais importante seria ter rosto e corpo femininos aos meus olhos míopes e foi isso que consegui, o melhor resultado possível com os melhores profissionais disponíveis e acessíveis. 

Agora que a obra está quase acabando, chega de fazer aquela cara de Desculpe o transtorno, estou fechada para reformas.

domingo, 7 de abril de 2013

Amigo de verdade

Amigo de verdade não é aquele que fala algo pra te agradar, mas aquele que fala a verdade que dói, esteja você preparada ou não.

Sempre fui uma pessoa solitária e com pouquíssimos amigos - não me serve, ter mil deles no facebook e falar de fato com 4 ou 5. Ultimamente tenho dado mais importância ao meu círculo de amizades, contatos por telefone, email, uma visita de vez em quando pra colocar o papo em dia e renovar o voto silencioso desse laços que perduram para sempre quando a amizade é verdadeira.

Com frequência acabo limpando a lista telefônica do celular e a lista de contatos de email. É o momento em que percebo quem são essas pessoas que estão guardadas no meu coração e que jamais serão apagadas da minha memória. São aquelas pessoas que fizeram a diferença pra mim em algum momento da minha vida, fosse ele bom ou ruim. Basta ler o nome na lista e logo me lembro dos momentos mais marcantes que passei ao lado delas, é só fechar os olhos e reviver o passado.

Costumo dizer que tive a sorte de conhecer pessoas maravilhosas ao longo desses últimos dois anos, algumas com quem mantenho contato frequentemente e outras que, mesmo não  falando frequentemente, deixaram sua contribuição na minha vida. Foram muitos almoços, jantares, cinemas, ótimas risadas, conselhos valiosos, verdades ditas, lágrimas, abraços apertados, conversas sérias, silêncio cúmplice. 

Amigo de verdade é aquele que diz que não gostou do seu modelito hoje, esse mesmo que você levou horas escolhendo, é aquele que mesmo sabendo da sua fragilidade não hesita em falar o que você precisa ouvir, é aquele que não esconde o descontentamento com alguma atitude sua, que se recusa a mentir só pra ter ver sorrir. Amigo de verdade não mente, fala olhando nos seus olhos sempre, muda o tom da voz, e no fim te dá um abraço e um sorriso que te reconforta e coloca tudo nos eixos novamente, não deixando que você se perca nesse mundo de faz-de-conta.

Amigo de verdade não se importa se você tem um jeito vida louca de ser, se você é mais reservada e fez voto de silêncio em alguma circunstância secreta no passado, se não fala coisa com coisa, ou se fica dando aulas de física quântica ao invés de falar sobre a vida. Amigo de verdade não importa em ouvir pela décima vez sua conversa monotemática, não se importa em pagar mico ao seu lado. Um verdadeiro amigo é alguém que pega a sua mão e toca o seu coração. [1]

Minha singela homenagem aos meus amigos do coração.

[1] Gabriel Garcia Marquez

terça-feira, 2 de abril de 2013

Família - parte I

Mesmo nas famílias menos religiosas o preconceito existirá em maior ou menor grau, não se iluda com a possibilidade da aceitação instantânea do processo de transição, pessoas extremamente evoluídas e compreensíveis estão escassas. Cada um tem o seu tempo: semanas, meses, anos ou o resto dos dias da vida.


A convivência diária acaba por nos mostrar a previsibilidade das reações que cada membro da família terá em relação a qualquer assunto. Se for um assunto light a reação é previsível, se for um assunto pesado a reação também é previsível. Assim que me sentei à mesa para comunicar o início da transição, já imaginava qual seria a reação de todos eles, quais precisariam de mais tempo e quais precisariam de menos tempo para digerir a informação. Jamais esperei receber um tapinha nas costas com um comentário do tipo: essa é minha nova filha ou isso não muda nada.

Nada ficou no lugar. Não foi Eu quem mudou, mas a forma com que os outros passariam a me ver, e para sempre. O mais difícil não foi falar, o discurso já estava pronto e cheio de recursos visuais para ilustrar com clareza o que aconteceria daquele momento em diante. Acalmem-se, não é uma doença terminal ou incapacitante. Eu não morreria - pra mim, apenas deixaria de ser, fisicamente, a mesma pessoa que eles viram crescer e que conviveram por muito tempo. Tempo o suficiente para saber que não haveria uma segunda opção, um plano B. Continuaria a detestar futebol, pesca, perder as manhãs de domingo na frente da tv, mas continuaria a adorar cozinha, passeios na praia e boas risadas, só que a partir de agora, temporariamente andrógina.

Em menos de 10 minutos tudo parecia estar esclarecido. E Eu, que sempre detestei falar em público, dessa vez queria poder falar por mais tempo. O diálogo chegou ao fim no Todos entenderam? Alguém tem alguma pergunta? E ninguém levantou a mão. Olhares perdidos no horizonte, um silêncio constrangedor se instalou por alguns infinitos segundos, choro copiosamente infantil e orações para me "livrar de todo o mal". Pronto, agora era esperar e, aos poucos, ir colhendo as verdades e as mentiras.

Nos meses seguintes, todos pareciam ter, da noite pro dia, se tornados mestres em ignorar os fatos, fingir que não havia nada acontecendo, que tudo estava normal, desde que não se pronunciassem as palavras hormônio, seios, dores, TPM e outras. A transição tornou-se assunto proibido naquela casa. Todos viam as mudanças, mas ninguém tocava no assunto. Ninguém queria ser o traidor. A primeira vez que o assunto ressurgiu, estava com 9 meses de HRT, inúmeras mudanças físicas visíveis e foram apenas duas ou três frases, nada além de Você tem certeza? e As vezes a gente pede com fé e não é atendido.

Ainda hoje, 2 anos após essa conversa que mudou drasticamente nossas vidas - a minha pra melhor, há quem ainda não conseguiu digerir a transição. Previsível. Longe de ser uma imposição, uma cobrança, uma frustração, ansiedade, entendo perfeitamente que cada um tem o seu tempo. Me sinto privilegiada por ter essa família perfeita dentro de sua imperfeição. Não é nenhuma família de novela das 8, mas renderia uma boa história para contar.