quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O caminho - parte I


Para alcançar um objetivo, é preciso renunciar temporariamente a certos prazeres, suportar a dor mais intensa. Só quem não desiste chega ao fim e a recompensa é demasiadamente gratificante.

O início da transição, talvez, seja a parte mais difícil de conviver. Aceitar o fato de que tenho incongruência de gênero e lidar com esse fato, me tomou um tempo e energia enormes. Dar o primeiro passo é difícil quando você está na zona de conforto, aparentemente está tudo bem, mas no meu interior ainda não estava pacificada minha decisão. O medo do desconhecido - nem tão desconhecido assim, pois sabemos ao que estamos sujeitas - me fez repetir um cotidiano massante por anos.

Quando dei meu primeiro passo rumo à transição, ainda havia muito medo do que poderia acontecer. Antes mesmo de ter em mãos a receita médica com a dieta hormonal, precisaria ter alguma certeza, por mais remota que fosse, de que Eu poderia me adaptar às mudanças radicais que passariam a fazer parte da minha vida. Foi quando em dezembro de 2011, sai de casa pela primeira vez vestida de acordo com o gênero com o qual me identifico, maquiada, perfurmada. Quando você está acostumada a ficar somente em casa, os primeiros raios de luz te trazem um medo tamanho que foram capazes de me paralisar por uns bons 10 minutos. Era um conflito interno gigantesco, vai, não vai, vai logo, não, não vai.

Se em algum momento do passado havia dúvidas quanto a transição, em todo o tempo que passei me arrumando até a hora de virar abóbora, Eu tive a mais plena certeza de que, daquele momento em diante, meu futuro reservaria uma vida plena e feliz, bastava colocar os pés fora de casa e enfrentar o mundo. Foi o que fiz. Era uma escolha e haveria consequências, algumas conhecidas, outras não.

Em janeiro de 2012 com a receita médica em mãos, uma nova vida estava começando timidamente. Muitas vezes queria que a transição se passasse como nos vídeos que costumava ver no Youtube, uma transição em 7 ou 8 minutos. É preciso ter paciência, aprender a lidar com a angústias, frustrações, pois não tem como controlar os efeitos e as mudanças hormonais. Gostaria de ter mais quadril, de ter os ombros mais finos, ter seios maiores e por ai afora.

Com grandes poderes nascem grandes responsabilidades, e Eu precisaria ser forte o suficiente pra lutar pela minha vida. As pedras no caminho se resumiram no tratamento ainda no masculino - quando você ainda está masculinizada - e na rejeição de parte da família. Nesses momentos Eu tinha que mostrar minha força e você só descobre que é forte, quando ser forte é a sua única escolha. Abri mão de muitas coisas, segurança, tratamento digno e humano, uma vida sem constrangimentos mas em troca ganhei milhares de outras, uma vida social, amigos, maturidade, felicidade.

Quando comecei a me sentir um pouco mais confiante, passei a sair para os meus compromissos sociais como mulher, afinal Eu estava nascendo e me descobrindo em cada passo, em cada ciclo de respiração, tudo era novo e - continua - empolgante. Estava extremamente insegura em relação a tudo, não entrava em locais onde não havia estado antes, não entrava em locais com muita gente, não andava por ruas movimentadas, estava exalando insegurança.

Com o passar do tempo, comecei a ganhar confiança e a me sentir mais segura, já não estava mais tão preocupada com os outros e suas reações e sim com a minha vida e minha felicidade. Aquele friozinho na barriga toda vez que me expunha fazia parte da minha rotina - ainda faz, em menor grau - e cada lugar novo que frequentava era uma barreira quebrada, um obstáculo a menos pra superar e a adrenalina de ter conseguido vencer mais um desafio era tamanha que acabava se transformando em um ótimo motivo pra enviar um monte de emails compartilhando a conquista e começar a visualizar o nascimento desse blog, como uma forma de extravasar o que mais tarde soube se tratar da mais pura felicidade que alguém pode sentir.

Ainda sinto esse friozinho na barriga, o que é bom, me faz sentir cada vez mais viva. 

Um comentário:

  1. Gabriella,
    Este é o fantástico exercício de se redescobrir. O que pouco vivenciam em uma vida inteira de vergonha por ser o que se é.
    Parabéns pelo texto e por cada passo nesta nova direção.


    Com apreço,
    Rafael Giuliano

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