quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Choque de realidade


Seria injusto comigo e com minha família dramatizar minha história de vida. Acho que a vida foi injusta comigo sim, em alguns poucos detalhes, mas em muitos outros me deu uma família maravilhosa da qual não posso reclamar, exceto por um detalhe, na verdade por um certo alguém que a pouco tempo me apagou, como um rascunho, definitivamente de sua vida, fato que acontece em 99% dos casos.

Muitos conhecem a história de vida das trans, não por opção, a falta de oportunidade é latente e o instinto de sobrevivência acaba por nos jogar no esteriótipo profissional cruelmente imposto pelos extremistas dessa sociedade hipócrito-pseudo-moralista. Milhares de histórias de vida comumente regadas a sexo, drogas e acordes tristes, todos os dias em alguma esquina da vida mal iluminada, a vida retorna à sua origem, ao pó, mais um ponto final em outra história que não estava escrita até o fim. Nicoles, Cecílias, Raicas e milhares de outras, veladas em nossos corações, memórias e posts. Poderia ser a minha história de vida, porém, o livro da minha vida não foi escrito assim,  imagino ter muitas páginas coloridas por escrever.

A vida me deu um presente do qual uso e abuso diariamente, determinação, vontade de vencer, coragem para batalhar pelo que quero e vou à luta. O passado ficou para trás, por isso transformo certas memórias em um romance fictício, como o que costumo contar quando falo desse certo alguém, uma história sempre abreviada numa pequena frase: ele foi um herói. ponto final.

Fiz isso algumas vezes, me sentei no meio fio, ofertando, num gesto de humanidade, uma refeição para um dos fantasmas sociais maltrapilhos de carne e osso bebendo a realidade inflamável que a sociedade, num surto de cegueira seletiva, insiste em não ver, assim como nós, desejando que sejam apenas uma ilusão de suas cabeças transbordando em preconceito ou medo. Estas oportunidade renderam muitas histórias comoventes e algumas lágrimas, desses sem-teto, mas com-coração-conteúdo-inteligência-sensibilidade-sonhos.

O choro me comove profundamente, não é sinal de fraqueza, mas, de extrema coragem, essas lágrimas traduzem a dor sólida que restou presa dentro de cada realidade saindo do coração e escorrendo pelos olhos rumo a liberdade. O choro de uma vitória sofrida, conquistada através de um caminhar perigoso e degradante pelos cantos mais sombrios da existência. O máximo que posso fazer é segurar suas mãos e compartilhar, no meu mais humilde silêncio, um olhar de cumplicidade.

Uma das poucas coincidências entre nossas histórias talvez seja o fato do meu sol ter se apagado uma única vez, se transformando em uma estrela que brilhou mais forte naquele 04 de janeiro, doeu perder a pérola negra que me criou desde quando abri os olhos pela primeira vez nessa vida. Outra, por ter sido assassinada, mas ainda mantendo o corpo cheio de vida e o coração pulsando, por alguém, que conheço e sei, nunca mais vai me ver.

Nunca experienciei o desespero de ter alguém em meus braços perdendo o pulso, minha realidade foi outra, dêem um choque para reanimar a sociedade que, nesse instante*, sem sinais vitais, definitivamente fechou os olhos.




* nesse instante com o sentido de, desde os tempos mais remotos.

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