quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Peregrinação



Na época da montagem da equipe multidisciplinar para me acompanhar no processo de transição, a maior pedra no caminho foi encontrar a principal especialidade, a endócrino que faria o regime hormonal. A procura se estendeu por sete meses até aquele 22 de dezembro de 2011, quando uma porta se abriu bem na frente do meu nariz. Ainda parecia não ser verdade que a partir daquele momento teria início mais uma fase importante e, sem sombra de dúvida, uma das mais felizes da minha vida, até aqui.

Os primeiros passos dessa jornada espetacular foram compostos por dezenas de listas de médicos em muitas cidades, Blumenau, Joinville, Florianópolis, Curitiba, Porto Alegre, São Paulo e finalmente Balneário Camboriú. Muitos telefones tocaram desesperados em busca de socorro, alguns esperançosos sins e muitos depressivos nãos. As primeiras consultas, sempre tinham um gostinho de esperança, de que, não haveria mais nenhum obstáculo, que, inúmeras vezes me fizeram sentar e esperar a tormenta passar. Minhas pernas já cansadas começavam a pensar em desistir.

O caminhar não era uma prova de fé, mas, para encontrar uma pessoa com alguma experiência para dar início à hormonização, então, marcava a consulta, em busca da minha verdade. Começava a explicar qual era minha expectativa em relação a HRT* e o que estava procurando, ansiosamente. A resposta nunca era a que queria ouvir, mas, a que precisava naquele momento para encontrar forças e chegar ao final dessa impiedosa peregrinação: "faço só depois da cirurgia…", "faço só após o segundo ano…", "faço mas …", sempre o mesmo mas que acabou por cauterizar minha esperança durante algum tempo, tempo o suficiente para recuperar as forças e seguir adiante.

Muitos meses e consultas inúteis depois, ao final de outubro, comecei a ligar para todos os endócrinos em Balneário, havia feito o mesmo nas cidades de Blumenau, Joinville, Floripa e algumas outras. A secretária me atendeu, primeira da lista, mais uma vez pediu meu telefone para retornar a ligação, meu sexto sentido sempre me dizia que não seria dessa vez que meu telefone tocaria uma música empolgante do Queen ou do Paul, a segunda da lista pediu meu telefone para retornar e mais uma vez somada as outras cento e tantas, minha esperança se perdeu na memória de um número qualquer, dois minutos depois, digitando o próximo número da lista, para minha enorme surpresa, a voz de Freddie Mercury ecoou por toda a sala acompanhada pelo coral solitário da minha voz (...) I'm burning through the sky Yeah!, finalmente a resposta que tanto esperava, explodi.

Temperaturas escaldantes capazes de derreter até o pensamento, tempestades de areia, nevascas mortais, o fim do mundo, nada me atrasaria para aquela consulta separada por 45 dias entre um telefonema e a porta a ser aberta para uma nova vida. Assim que nos vimos, senti uma empatia enorme e a consulta fluiu naturalmente, ela sabia do mal que me afligia e que me levou a atravessar aquela porta. Exames, laudo psiquiátrico e quinze dias depois, finalmente, sai do consultório com a receita da minha tão sonhada vida real, à venda em qualquer farmácia em forma de pílulas.

O fim da peregrinação havia deixado para trás o peso do mundo, o futuro não parecia mais tão distante, como um estrada num campo de girassóis. Esse caminho me provou que não são as coisas materiais que me trazem a felicidade, mas as dificuldades que superei, os medos que enfrentei, as pessoas maravilhosas que encontrei com as quais compartilhei uma mínima parte dessa jornada e o sentimento de ter alcançado a vitória, mesmo que o resultado dessa caminhada representasse sacrificar a própria vida, perder as pessoas que carreguei no coração. 

Toda grande caminhada começa com um simples passo.[1]

*Hormone Replacement Therapy
[1] Buda.

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